
O afeto como redenção
Por Marco Fialho
Quem
acompanha furtivamente a cativante filmografia do cineasta japonês Hirokazu
Koreeda e perdeu seu filme anterior, "O terceiro assassinato", uma
trama repleta de mistérios e suspense pode estranhar o inusitado "Assunto de
família", seu último trabalho, laureado com a Palma de Ouro em Cannes em
2018.
Em
"Assunto de família" há uma visível mistura das consagradas e
habituais tramas familiares afeitos ao diretor, mas com uma guinada inesperada que descamba para uma investigação
policial. Quando Koreeda realiza esse deslocamento, o filme não só ganha em
interesse para o espectador como também em alternativas de visões sobre o mundo
e nossos valores. É como se ele nos tirasse de um determinado olhar domesticado
sobre a família e nos colocasse diante de uma nova lente que revela impasses
mundanos surpreendentes. Não há julgamentos dele enquanto
diretor, o que nos faz repensar a visão de como são constituídos os
laços familiares.
Narrado
de uma forma na qual só os japoneses sabem fazer, resguardando a naturalidade das
ações de cada cena, o diretor parte de situações banais, de uma família pobre,
não paupérrima, que arruma formas para sobreviver na periferia de uma sociedade
onde os interesses econômicos já estão estabelecidos com regras hipócritas de bom viver, sempre sustentadas por algum esquema de segurança. Koreeda, como
jamais fez em seus filmes, nos mostra um Japão classista e o faz de maneira
bastante contundente ao relativizar o que é ser feliz no mundo contemporâneo. E
é nesse contexto, que uma determinada família tenta levar a vida da melhor
maneira possível. Para Koreeda, a necessidade também agrupa e cria afetos e
solidariedade. O Estado agora é algoz, desumanizou suas relações com a
sociedade, criou oficialmente distâncias e muros. Visto com os olhos de 2021, soa como um prenúncio do filme "Parasita", ao trabalhar com a sobrevivência e a moral de grupos à margem do poder e do dinheiro.
Se
o mestre Ozu trazia para nós uma sociedade onde o conflito entre tradição e
modernidade estava se instalando, Koreeda instaura seu filme em um período
histórico em que as tradições já não ecoam tão forte no cotidiano. Se no mundo
de Ozu havia transição, no de Koreeda é a pós-modernidade nos fincando suas
garras afiadas. O Japão de hoje é o do consumo, não à toa se estabelece um
conflito entre quem tem e quem não tem. Koreeda trabalha isso em "Assunto
de família" sem discursos, tudo está expresso apenas em imagem e ações.
Daí
o filme de Koreeda começar em um supermercado com pai e filho roubando itens para suprir suas necessidades. Para o diretor a tal modernidade de que falava Ozu em seus
filmes está aí, implantada e destruindo os valores familiares. Koreeda não
parte de teorias para falar sobre o mundo, parte sim de como as formas da
modernidade intervém e abalaram os valores tradicionais. Mas não há em seu filme moralismo
ou julgamento frente à situação, a preocupação maior é o de questionar os
sentimentos humanos que sustentam as relações. Koreeda realiza tudo de maneira precisa e
seca, sem sentimentalismo. Como falar em tradição, quando tudo a sua volta a
fez desmoronar? Se família é afeto, Koreeda nos mostra qual
família estamos querendo preservar. A polícia quando intervém, qual o seu
interesse? O que ela quer preservar? Fica então algo pairando no ar, um
incômodo, pois Koreeda nos afeiçoa perante aqueles seres, mesmo eles praticando
atos considerados abomináveis socialmente. Será que ao estabelecermos uma visão
rígida de família não nos tornamos prisioneiros e reféns de algo que defendemos
e mal sabemos exatamente o que é e qual a sua representação nesse nosso mundo
contemporâneo?
Em
tempos em que muito se discute uma ideia de família tradicional, conceito já deveras
cristalizado em sua constituição, Koreeda vem com um filme do outro lado do
mundo e desconstrói a visão reducionista e simplista de que o afeto está circunscrito
em uma determinada forma de organizar a família. O afeto não pode mais ser
categorizado e Koreeda mostra isso lindamente através de um mero olhar de
uma criança em uma janela no final do filme. Para ele, o afeto está no
mundo, não em instituições e convenções pré-estabelecidas, senão estaremos
condenados a viver em uma ideia de família aprisionante e infeliz. "Depois de assistir a Assunto de família" fica então uma pergunta a martelar e a nos deixar insones: qual é mesmo o mundo que queremos construir e como o afeto está inserido nele?
Visto
no dia 12/01/2019, no Estação Net Botafogo 1.
Cotação: 4 e meio/5
Cotação: 4 e meio/5
Esse filme tão tocante e terno é uma liçãode vida,nos fazendo refletir sobre os verdadeiros laços imperdivel Parabens pela analise
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