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YARA - Direção de Abbas Fahdel

Texto escrito por Marco Fialho

Uma viagem ao tempo de Yara

Um dos poderes mais sedutores das artes reside na capacidade de nos transpor para mundos que quiçá jamais conheceremos in loco. E o cinema, com suas imagens e sons é um instrumento com potencial para nos fazer acessar as regiões mais insólitas e ermas do mundo. É o que acontece em Yara, filme do franco-iraquiano Abbas Fahdel. A vontade de atravessamento bate forte, de se transpor para aquele lugar fílmico e ali ficar, numa viagem sensorial onde as referências de espaço-tempo são abolidas e nossas vidas passam a ser partilhadas com aqueles personagens, sem qualquer julgamento a priori, apenas como uma mera razão do nosso existir.

Se uma das grandes graças do cinema é a capacidade de propor uma nova relação de tempo com o mundo que nos cerca, de mostrar o quanto a percepção do tempo é mais do que simplesmente pessoal, que ela participa de uma grande construção onde estão alinhavadas estruturas de poder e controle social. Daí a enorme satisfação quando encontramos um filme que possibilita adentrar em outra construção de tempo e Yara é um desses presentes que só o cinema pode ofertar.

Tudo se passa em um vilarejo, ou uma sombra de, incrustado nas montanhas do Vale de Qadisha, no Líbano. É o lugar onde vivem sozinhas Yara e sua idosa avó. Ali não é o Líbano dos conflitos que sempre assistimos nos noticiários. A única imagem de arma está justamente pendurada na parede do quarto de Yara, o que pode dar a supor que tudo ali pode ser apenas uma tranquilidade aparente, ou, quando se está isolado sempre o medo de uma visita inesperada e indesejável estará à espreita. Mas o ambiente é de profunda paz e silêncio, apenas interrompido pelos sons dos inúmeros animais que vivem no seu entorno e que são a base de uma vida regida pela economia de subsistência.    
Por isso, desde as primeiras cenas fica bem evidente que a forma de lidar com o tempo se configura como um primeiro passo para imersão na proposta cinematográfica de Abbas Fahdel. A rotina sem grandes afazeres é a tônica, restrita a poucas relações humanas e bem mais constantes com os animais que as cercam. Tudo ali gira em torno de galinhas, cabras, pássaros, insetos, javalis, gatos e uma cachorra chamada Lassie. O Vale não tem sinal de celular e a única forma de saber o que acontece no mundo para além das montanhas é uma televisão, que quase não é usada, afinal, para que saber algo do mundo morando em um lugar inóspito e cuja vida pouco se dita pelo que vem de fora? Lá convivem harmoniosamente o pequeno (os insetos e as pedrinhas) e o gigantesco (suas montanhas e o verde abundante da natureza).

Fahdel nos impõe a cada tomada todo o vigor onipresente do Vale de Qadisha. A imponência de sua presença, ditada pelas montanhas com grandes contrafortes, íngremes em demasia e cercadas de uma natureza frondosa e impositiva. Resta ao humano uma única saída, adaptar-se ao espaço como ele está posto. As atividades diárias são poucas e o tempo livre em excesso. Enquanto nós lutamos por qualquer tempo de ócio, em Qadisha ele é soberano, sobra então  o tempo para a contemplação e a conversa fora. Existe uma estratégia narrativa recorrente durante todo o filme, a câmera sempre começa nos personagens, mas sempre ao final de cada cena ela se movimenta lateralmente para nos mostrar a exuberância da paisagem, como se quisesse lembrar esse fato imperativo da força da natureza. Frente à paisagem, tudo ali torna-se menor e frágil. A própria geografia do lugar, regida pela topografia em declive e sinuosa do terreno, inacessível à veículos e com transporte feito com pequenos burros de carga.

O tempo em Qadisha é tão dilatado que os poucos moradores esquecem que seus vizinhos envelhecem. Yara perdeu os pais muito jovens em um acidente, não possui sequer uma imagem desse convívio, por isso pede para a avó narrar algo sobre eles. Ela vive uma adolescência atípica, sem os colegas de turma, namorados ou pretendentes, afinal a escola do quase vilarejo está abandonada e sem professor. Dois meninos da vizinhança são sua companhia diária, quase seus irmãos mais novos.                               
Todavia a calmaria na vida de Yara só é abalada pela chegada do visitante Elias, que está passando uns dias no Vale de Qadisha. Um amor de verão se anuncia e o acompanhamos no ritmo do quase vilarejo, curtindo com eles seus momentos de carinho e afeto. Só depois que Elias passa a visitar periodicamente a namorada é que os vizinhos reparam que a bela menina Yara agora é uma mulher, capaz de atrair a atenção dos poucos homens que por ali passam. Junto com a constatação chega a pressão por uma definição sobre o futuro matrimonial de Yara. Os passeios de Elias e Yara pela vida silvestre do Vale de Qadisha passam a ser um problema, algo a ser resolvido. Elias nesse ambiente é um forasteiro, uma ameaça à pequeníssima coletividade. O conservadorismo se apresenta e o elemento feminino, sexualmente presente, se torna algo a ser "resolvido". Apesar de viver ali inospitamente, Yara não se veste propriamente como uma mulher do campo, suas roupas, mais urbanas, passam a incomodar. Yara após o banho fica do lado de fora da casa envolta com uma toalha e um dos vizinhos, um guia local, chama sua atenção acerca do seu comportamento "ofensivo" aos homens.

Os encontros entre Yara e Elias se intensificam, e Fahdel se utiliza deles para nos ofertar passeios lindos pela natureza primorosa do vale. Cachoeiras, mirantes, casas e igrejas abandonadas mostram como o quase lugarejo está em vias de extinção e que Yara representa a vitalidade do local. A beleza do filme está nessa viagem ao desconhecido, fundamentalmente ao desconhecido temporal, ao nos propor um ritmo onde o contemplar faz parte do existir humano. Não à toa em dois momentos o celular de Elias toca, interrompendo o fruir dos personagens e o nosso também como espectadores, que lembramos o quanto o nosso existir está condicionado pelo uso dos celulares. Fahdel nos mostra com sutileza, sem precisar dizer palavras, o quanto nosso mundo cada vez mais urbano e tecnológico, distancia humanidade e livre convívio.

Visto numa cabine de imprensa, no Espaço Itaú de Cinema, em 21 de dezembro de 2018.
Cotação: 4 e meio/5

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