Um
beijo de Benício em Nelson
Em
breve não poderemos falar do cinema realizado em 2018 sem mencionar "O
Beijo no asfalto", dirigido por Murilo Benício. O diretor realiza de uma
vez só uma análise profunda sobre a sociedade brasileira e sobre o papel das
artes em nosso país. Inventivo, impalpável (sim, há algo nele que nos escapa e
isso é cativante demais), cinematográfico e cênico. Profundo sem esboçar um
sequer toque de esnobismo estético. Fluido, mas com camadas ininterruptamente ricas, onde vê-se a mão
precisa e hábil de Benício.
Talvez
Benício tenha conseguido a façanha de ser o primeiro a filmar Nelson Rodrigues
e não soar como diluição, pois é assim que o cinema nos vem entregando Nelson, como uma obra menor, inadaptável para as telas grandes, como se fosse intransponível
a passagem de uma linguagem para a outra, como se a obra rodrigueana soasse incompatível mesmo com o cinema. O mérito de Benício foi justamente a da escolha de um método para trazer
Nelson para o cinema.
O
que se tem de potente em "O Beijo no asfalto" de Benício é a forma de se
pensar a fusão teatro, cinema e vida, como um contínuo pensar sobre os três
elementos constitutivos básicos dessa obra. Vida aqui entendida historicamente,
refletida como matéria prima do processo. O filme lembra (e sente)
que teatro e cinema nada seriam se não fosse algo vital, como elementos necessários do próprio existir humano.
Por isso há em "O beijo no asfalto" um processo consciente de desconstrução do espaço cênico teatral e cinematográfico,
entretanto há um movimento que é realizado respeitando-se as camadas históricas do
país e de suas artes. Amarra as artes com seus equivalentes sociais, lembra dos contextos e repercussões. Situa obra
e autor, mas sem didatismo, com inteligência e brio e incorpora comentários à
peça e ao autor de maneira orgânica à proposta do filme. Benício não busca iludir
ou confundir quanto ao que vemos. Desde o início somos informados que estamos
assistindo a uma leitura do elenco que fará o filme. O que vemos não é um faz
de conta ou uma farsa sobre um grupo tentando montar uma peça ou fazer um filme.
Talvez seja isso seu imenso trunfo, o de mostrar o quão rico também é o processo de uma peça ou um filme, independente do produto final.
Há
em "O beijo no asfalto" uma humanização das relações artísticas, ou
melhor, há o registro do humano antes do registro da interpretação. Em um mundo
onde a mecanização se impôs irremediavelmente, o filme traz a reflexão para um outro
patamar, e pensa os processos artísticos e a vida como simbióticos
e necessários para situarmos como indivíduos históricos e sociais. Nos faz
pensar sobre as próprias camadas existentes na construção de uma obra artística,
mas não retira a sua magia, apenas a expõe dignamente e instaura uma outra
magia porque a arte de representar está presente e incorporada ao filme.
Mesmo
que a peça "O beijo no asfalto" tenha sido escrita na década de 1960,
a obra de Murilo Benício abre um diálogo atualíssimo ao trazer as fake news, a homofobia e as repercussões sociais tanto numa perspectiva do passado quanto do presente. Isso também mostra como
que a escolha de um texto dramatúrgico, ou de um roteiro para ser filmado, não só
fazem parte da construção de uma obra, mas são historicamente fundamentais. A
relação da imprensa sensacionalista, nada investigativa, o da truculência policial com o conservadorismo
arraigado dos costumes são fartamente trabalhados por Nelson, e hoje, após mais
de sessenta anos passados, a impressão que temos é de que continuamos regidos
sob o manto de uma hipocrisia e que a base de sustentação é muito mais enraizada
do que imaginávamos, basta ver o buraco aberto pelas mídias sociais sobre o tema. Alguns avanços, inclusive jurídicos, acabaram por encobrir o conservadorismo, que ainda era bem significativo.
Não fui assistir ao filme em uma cabine de imprensa, mas sim numa sessão misturado com o público em geral, como aliás faço bastante. Ao
sair da sessão ouvi análises cáusticas sobre Nelson, o que demonstra que o
autor ainda é visto com preconceito por alguns. Mas fica a indagação: como negar a obra
de um artista poderoso, que desmontou a hipocrisia de forma tão consistente? Muitos dizem que Nelson Rodrigues foi um ácido e entusiástico crítico da
sociedade brasileira e suas tradições. Todavia, a meu ver, foi bem mais que
isso. Nelson foi antes de tudo um fervoroso crítico da cultura. Cultura aqui
entendida como uma série de costumes erigidos por uma determinada ordem social
com a finalidade de buscar, coletivamente, equilíbrio e perpetuação. Para
Nelson, todas as formalidades e convenções eram frágeis e facilmente
destruídas pela simples manifestação da natureza. O desejo sexual, a ambição sem
fim e o instinto animal, inerentes a todos os seres humanos, seriam entraves irrefreáveis às regras sociais, os ditos tabus. Daí Nelson explorar o amor carnal de um pai
a uma filha e vice-versa e as traições entre casais. O casamento era por si,
uma instituição natimorta, pois ela não anula o desejo. Assim, Nelson extrapola
o histórico e atinge em cheio o social e o filosófico.
Discutir a obra de Nelson Rodrigues será sempre fundamental para quem almeja se aprofundar sobre as formas de existir do humano e a difícil convivência social. E a oportunidade de debatê-la à luz da proposta de Benício é mais estimulante ainda. Quando assistimos ao documentário das leituras do texto dos atores com Amir Haddad somos introduzidos no processo, claro. Entretanto há um ganho para nós espectadores pelo simples fato de termos a presença de Fernanda Montenegro no grupo. Nada apaga o brilho dessa luz, que mostra conhecer Nelson como ninguém e o mais importante: o quanto conhece o país e suas intrínsecas contradições. A personagem dela nem chega a parecer nas encenações, mas quem disse que precisava, ela consegue fazer a fofoqueira vizinha Matilde como uma sombra, aquela que infeliz ecoa a maldade, as fake news. A beleza do filme está em muitos lugares: em diversas camadas; na rústica e bela fotografia em P&B e na brilhante câmera de Walter Carvalho; na inteligência de Amir; na concepção cinematográfica de Benício; na precisão cênica dos atores; no criativo e inusitado desenho de som; na denúncia da homofobia; e tantos outros ainda citáveis. Mas é em Fernandona que a lucidez de tudo se materializa e se potencializa.
Visto no Espaço Itaú de Cinema, no dia 15/12/2018.
Cotação: 5/5
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