Crítica de Marco Fialho
Uma
mulher, o tempo e o cinema
Que filme bem construído! Essa foi a primeira ideia que me veio à cabeça, assim que
terminei de assistir ao vigoroso drama húngaro "Um dia", dirigido por
Zsófia Szilágyi. E a força desta obra está justamente na opção da diretora em
assumir, de forma convicta, o ponto de vista da protagonista Anna.
Toda a história se passa em vinte e quatro horas, onde acompanhamos os
diversos afazeres de Anna. Mais do que simplesmente retratar uma determinada
forma de vida, Zsófia constrói um poderoso painel cinematográfico de uma mulher
imersa nos desafios do mundo contemporâneo.
Tudo neste filme está contagiado de muita intensidade. A começar pela família
grande: esposa, esposo, três filhos e a mãe do esposo. As interpretações buscam
uma espontaneidade vinda do cotidiano de uma classe média que tem no trabalho
sua fonte de sobrevivência, sempre na luta para ficar no limite entre o básico
e o conforto. Destaque para o trabalho da atriz Zsófia Szamosi, como Anna, numa
atuação de entrega total e de tirar o fôlego da primeira à última cena.
O ponto forte da narrativa está no hábil movimentar da câmera que
procura dialogar com os movimentos sempre rápidos de Anna. A ideia é de grudar
a câmera sempre o mais próximo possível de seu rosto. Há uma busca em captar
sua agitação, de explicitar a personagem pela forma na qual ela transita pela
casa, no carro, na rua, na escola do primogênito, na escola de balé da filha, nas aulas de esgrima do filho ou na creche do caçula. Os desafios da mulher na
contemporaneidade emergem a todo momento. Nesse ponto, a diretora busca
registrar as incontáveis tarefas dessa mulher guerreira, que em um único dia se
supera para manter sua família de pé, perante um marido pouco presente.
O que colabora muito para que a proposta realista do filme vingue, e se
sustente até o fim, é o cuidadoso trabalho do som. Todos os ruídos do cotidiano
não só estão presentes como são mixados e amplificados de maneira a salientar a
frenética rotina da família. Tudo foi pontualmente pensado e criado para nos deixar
tão atordoados quanto Anna. O som contém em si a própria vertigem dessa
personagem, sublinha o quanto é difícil ser mulher em uma tríplice jornada de
trabalho. Mas o tom não é propriamente o de denúncia, mas o de criar um afeto nosso
por ela, que nos faça refletir profundamente sobre os papéis sociais de cada um
dentro da família. A opressão masculina está ali, é evidente, pode não ser pelo
discurso verbal, mas o é pela ação de cada um dos personagens. A conclusão é toda
nossa, apesar de tudo está bem às claras no discurso cinematográfico de Zsófia
Szilágyi.
Cabe pontuar em "Um dia" a construção acerca da noção de tempo
na sociedade contemporânea. Um dos grandes acertos de Szilágyi é o conseguir
nos passar a desproporção entre afazeres e tempo disponível. A diretora se
utiliza de um dispositivo simples e eficaz, o de manter um relógio digital na
cozinha que vai nos registrando esse passar do tempo, ou melhor, esse atropelar
do tempo sobre os personagens, em especial sobre Anna.
O protagonismo, dado pelo ponto de vista de Anna ocupa a tela e nos
força a pensar sobre a sua vida. Além de trabalhar como professora de italiano, Anna cuida de seus três filhos,
levando-os à escola, creche, tratando de suas doenças, faz almoço, janta, lava
e estende a roupa na corda, enfim, funciona quase como uma máquina. Para
completar, ainda precisa administrar um casamento em crise. Há evidentemente um
forte viés feminista incorporado à narrativa de "Um dia". Todavia, o
que mais chama atenção é a incrível capacidade do filme em criar uma força eminentemente
cinematográfica, sustentada não propriamente nos diálogos, mas sim na potência da ação da protagonista e na concepção
sonora que a alicerça. A vida cotidiana da família de Anna não despenca pela
sua vitalidade. Fica nos martelando as perguntas: será possível manter esse tipo
de família do século 20 em pleno século 21? Essas múltiplas jornadas são justas
para as mulheres? A forma como o tempo desta mulher está organizado lhe traz
felicidade?
Assim é "Um dia", uma obra repleta de indagações e dúvidas
sobre o viver de Anna, mas que bem poderia ser a de tantas outras mulheres mundo
afora. O mais difícil mesmo é sair do cinema e se livrar com facilidade dele. Dá
vontade de ir para debaixo de uma mesa e ficar ali, fugido, pensando o quanto o
mundo é pesado para essas valentes mulheres.
Visto no Espaço Itaú de Cinema 6, em 13 de outubro de 2018.
Cotação: 4/5
Cotação: 4/5
Perdi esse. Agora é esperar no canal Brasil.
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