Crítica de Marco Fialho
Um passado que persiste no hoje ou um hoje que persiste no passado?
O documentário "A última abolição", dirigido por
Alice Gomes, consegue se estabelecer como um importante estudo acerca do
processo histórico da abolição da escravatura no Brasil. Sua meta é fornecer um
painel amplo do tema, o ampliando para muito além do exame factual, se
concentrando em especial nos depoimentos de historiadores brasileiros.
Ainda que o filme exagere no formato entrevista para a
câmera, o que o torna às vezes um pouco cansativo, no todo há um ganho pelo
grande número de análises bem fundamentadas e dados preciosos sobre a escravidão no Brasil, pesquisados pela diretora e ditos em forma de legendas, que muito
colaboram para que a força do filme se imponha.
O grande destaque de "A última abolição" está na
escolha dos entrevistados. Historiadores de inconteste valor, como João José Reis
e Hebe Mattos, se somam a novos historiadores negros mais recentes como a
brilhante Giovana Xavier e Nielson Rosa Bezerra. Esses depoimentos, por mais
que não tragam muitas novidades, possuem consistência, o que valoriza demais o
resultado final.
Como o filme é mais preocupado em discorrer sobre o tema do
que tentar ousar na forma cinematográfica, todas as entrevistas são organizadas de forma a
abordar e esclarecer temas específicos, como o do tráfico negreiro; as leis que
já insinuavam o absurdo da escravatura, como a do ventre livre e a do
sexagenário; o papel dos grandes personagens do abolicionismo; o que foi o movimento abolicionista; o que representou a lei
áurea; as sequelas sociais que ainda sobrevivem em nossos dias, provenientes da
escravidão, como o racismo e as diferenças de oportunidades. Claro que a opção
de fazer um painel com essa profusão de subtemas enfraquece a proposta, porque
fica sempre faltando um aprofundamento em cada especificidade levantada. Todavia é evidente que a força do tema resiste, pois sempre precisamos falar desses
assuntos que frequentemente são jogados para debaixo do tapete, e em um país onde
muitos acreditam ser uma democracia racial, nunca é demais levantar essa bola.
Lógico que "A última abolição" se afina muito com
uma tendência de um certo cinema feito hoje, que assume não só um determinado ponto
de vista como também vai além disso, ao ter como princípio o resgate de uma
história antes apenas contada pelos setores dominantes. Desconstruir uma
determinada visão de história faz parte da construção de um novo paradigma,
onde a escravatura é vista e contada pelos agentes que a sofreram, e ainda sofrem,
seus danos e sequelas. Um mérito desse filme é trazer a escravidão para os
nossos dias, de relacionar a política de privilégios de hoje com o passado. Dar
voz a pesquisadores em sua maioria afro-brasileiros é outro acerto desse
documentário e dá uma coerência ao todo, pois o discurso se encaixa perfeitamente
na mensagem.
Fazer o espectador refletir sobre o lugar reservado aos negros no Brasil é fundamental para uma consciência mais abrangente sobre essa questão tão delicada e sempre tratada por muitos como já superada. Se perguntar sobre as periferias, quem as habitam e como vivem faz parte desse resgate histórico de colocar os pingos nos is. E o filme de Alice Gomes faz isso, pesquisa e mostra o resultado doloroso da desigualdade, nos faz pensar o quanto o passado ainda alicerça o poder de hoje, ainda branco e que ratifica a exclusão da maioria da população negra, que após a abolição foi relegada ao descaso público.
Fazer o espectador refletir sobre o lugar reservado aos negros no Brasil é fundamental para uma consciência mais abrangente sobre essa questão tão delicada e sempre tratada por muitos como já superada. Se perguntar sobre as periferias, quem as habitam e como vivem faz parte desse resgate histórico de colocar os pingos nos is. E o filme de Alice Gomes faz isso, pesquisa e mostra o resultado doloroso da desigualdade, nos faz pensar o quanto o passado ainda alicerça o poder de hoje, ainda branco e que ratifica a exclusão da maioria da população negra, que após a abolição foi relegada ao descaso público.
Se vivemos uma época em que o empoderamento das matizes afro-brasileiras estão na berlinda como jamais estiveram, e muito por conta de uma política governamental que permitiu o acesso dessa população às universidades brasileiras possibilitando que essas vozes aflorassem. Também precisamos reconhecer o quanto tudo isso está em risco novamente, principalmente pela reação de forças retrógradas que sempre dominaram o país. Tentar escrever a história a partir da voz oprimida não é fácil, esbarra e sempre esbarrará em contínuas resistências vindas das elites. Nesse ponto, o cinema pode ser um instrumento valioso para propor debates necessários para a nossa sociedade, que ainda precisa amadurecer e avançar muito o conhecimento sobre si própria. E esse papel "A última abolição" cumpre com louvor.
Visto no Espaço Itaú de Cinema 6, no dia 20 de outubro de 2018.
Cotação: 3 e meio/5
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