Critica escrita por Marco Fialho
Quando o afeto do cotidiano encontra a realização estética.
Entretanto ao situar "Benzinho" nesse espectro de filmes, uma ressalva vale a pena de ser feita. Ele se configura como o mais interessante, o mais bem urdido desse conjunto de obras. O maior desafio desses filmes, cujo foco narrativo é o próprio reconstruir naturalista de um determinado contexto familiar e cotidiano, é o de apagar o ranço de sua concepção matriz, o das novelas de TV. Disfarçar essa contaminação para que tudo pareça cinema é o árduo trabalho a ser desenvolvido pela equipe. Direção, roteiro, arte, fotografia, som, montagem e sobretudo, direção de atores, peça fundamental dessa engrenagem que aqui nomeio de filmes contemporâneos sobre o cotidiano das famílias brasileiras.
Se tem algo em comum a salientar entre os quatro filmes supracitados é a convicção de que existem temas que precisamos falar com urgência, que o país precisa enfrentar para não ruir coletivamente. Deve-se sublinhar a importância histórica de todas essas obras, assim como a coragem de seus realizadores, esse mérito há de ficar para quando retornarmos a eles em uma futura retrospectiva, quem sabe daqui há vinte anos. Apesar desses méritos intrínsecos, não podemos lhes ocultar carências comuns, em especial quando analisados em conjunto, e com um maior rigor estético, deixando de lado o calor do momento histórico nos quais foram produzidos. Não consigo aqui não observar que a necessidade do discurso afetou o todo e revelou falas forçadas, que empobreciam a mise-en-scéne dessas obras. Em todas elas, a origem das narrativas das novelas apareciam sempre em algum momento e pondo em xeque o aspecto cinematográfico. Para um tempo futuro vale realizar um estudo minucioso e caso a caso, com o devido esmiuçar comparativo.
Entretanto, a pergunta que fica é: seria possível a existência de "Benzinho" sem a eclosão anterior dessas obras? Acredito peremptoriamente que não. Há uma filiação irrefutável dela perante a todas essas obras. Será possível compreendê-la ignorando a existência delas e suas similitudes? A partir dessas perguntas e ponderações, por mais que elas careçam de um devido aprofundamento posterior, temos agora uma base para abrir um diálogo acerca de "Benzinho". Depois de estabelecida sua árvore fílmica genealógica é possível discernir melhor diferenças e aproximações tendo sempre à vista essa sua relação embrionária.
Conforme já propomos acima, "Benzinho" consegue dar passos significativos do ponto de vista cinematográfico dentro desse panorama do cinema contemporâneo do século 21, que tem o cotidiano familiar como mote. Logo no início "Benzinho" consegue unir a fluência de sua narrativa com uma construção cinematográfica engenhosa. Pizzi consegue falar dessa família em poucas imagens, seja com uma torneira que teima em pingar e até jorrar água seja na maçaneta da porta que não abre. Só nessa pequena sequência inicial Pizzi nos brinda com uma aula de cinema, pois ele nos comunica a situação econômica daquela família, a garra de sua protagonista e como nós brasileiros sempre damos um jeito para sair das situações mais impeditivas que nos são postas pela dura realidade. Ainda tem aquela primeira imagem da família atravessando a rua para ir à praia tendo ao fundo uma piscina de PVC. Essa imagem representa muito o que será o filme e que tipo de família vai ser abordada.
Que fique claro: "Benzinho" é um filme pós-golpe, uma obra que diz isso sem nomear em palavras que fala desse tema. É o Brasil quebrado, com a população tendo que se virar como pode e consegue. Pizzi nos fala de uma família de classe média baixa, empobrecida, aviltada pela crise econômica. O símbolo dessa decadência é uma Kombi para biscates, seus momentos de lazer e outras urgências da família. Todos os elementos estão ali, construídos com detalhismo. Pizzi usa o poder das imagens para nos falar de seus temas. E isso é muito rico e alentador para um público apaixonado por cinema. Nos obriga a acompanhar tudo que está em quadro. O maior meio de vida da família é uma pequena loja que pertence ao personagem de Otávio Muller. Parece ser a derrocada da ideia de empreendedorismo para os mais humildes e isso é o que está por trás dessa história familiar.
Todavia, "Benzinho" também é uma obra pensada para o protagonismo feminino. E ele é composto no interior dessa família comum, dentro de seu universo cotidiano, o que é um achado que lhe atribui uma potência incrível. Um dos acertos de Pizzi está na escolha desse ponto de vista. A narrativa é ditada por Irene, isto é, Karine Telles em seu melhor desempenho de sua carreira. A sua intensidade e entrega ao papel é comovente. Um das grandes atuações de nosso cinema recente. Pela sua entrega ao papel, Karine nos faz lembrar Liv Ullmann, a fenomenal atriz norueguesa bergmaniana. A força disso tudo parece vir de uma natural intimidade, facilitada por Pizzi trabalhar em família, com mulher, filhos e enteado. Dessa configuração nasce muita verdade e tudo utilizado para a criação de um naturalismo que funciona, com a proposta de se retratar o cotidiano de uma família. Adriana Esteves vive Sônia, irmã de Irene e também está ótima, inteiramente desglamourizada.
Pizzi realiza uma obra onde a força das mulheres está presente vigorosamente. Irene quer voltar a trabalhar, não quer ser apenas uma dona de casa e Sônia quer se ver livre do violento marido, vivido pelo ator uruguaio Cesar Trancoso. Elas têm um negócio juntas, desses de colocar tudo numa kombi e vender na rua, de improviso. Em "Benzinho" há uma leitura acerca das novas relações de trabalho em um mundo globalizado, onde a indústria chinesa impera com seus produtos de baixo custo e com sua qualidade duvidosa. Como ser empreendedor quando o trabalho manual, aquele feito em casa torna-se desqualificado e inviável economicamente.
Pizzi realiza uma obra onde a força das mulheres está presente vigorosamente. Irene quer voltar a trabalhar, não quer ser apenas uma dona de casa e Sônia quer se ver livre do violento marido, vivido pelo ator uruguaio Cesar Trancoso. Elas têm um negócio juntas, desses de colocar tudo numa kombi e vender na rua, de improviso. Em "Benzinho" há uma leitura acerca das novas relações de trabalho em um mundo globalizado, onde a indústria chinesa impera com seus produtos de baixo custo e com sua qualidade duvidosa. Como ser empreendedor quando o trabalho manual, aquele feito em casa torna-se desqualificado e inviável economicamente.
Pizzi acerta também no ritmo do filme. Sem pressa, lentamente e sem sustos, as rotinas vão sendo construídas. Os planos próximos nos rostos são realizados com precisão e muito nos fazem aproximar das suas dificuldades, nos fazem afeitos deles. Karine Telles, tem closes expressivos que nos permitem adentrar em seus sentimentos mais profundos, mesmo que nada seja dito na cena. A história do filme narra uma dupla crise de uma mulher de meia idade. Ela está abalada com a provável partida de seu primogênito para a Alemanha e também com seu desejo de voltar ao mercado de trabalho ao terminar o ensino médio. Não aleatoriamente, Pizzi abusa das cenas de água, pois elas remetem à questão embrionária, da necessidade de um novo corte no cordão umbilical. Em alguns momentos a posição fetal também surge para reforçar essa ideia. Mas esses conflitos ainda são ratificados por uma trilha sonora impactante. Quase sempre, o som surge de forma não explicativo, se impõe em um embate, jamais para salientar algo que a imagem já está a dizer.
"Benzinho" merece ser visto, revisto e já está posto como um novo clássico popular do nosso cinema. Um filme onde todos os seus elementos estão sintonizados e atuando quase que de forma imperceptível. Esse é o charme de "Benzinho", o de naturalizar tanto a atuação dos personagens quanto os elementos técnicos. Essa organicidade eleva "Benzinho" a um dos maiores filmes brasileiros desse século. Nele, a vida torna-se em um piscar de olhos em cinema e esse é o desafio que se impõe aos filmes que retratam os cotidianos de famílias. "Benzinho", até agora é o melhor resultado alcançado pelo nosso cinema nesse viés, por conseguir unir com precisão afeto e estética.
Visto no Espaço Itaú de Cinema 1, no dia 29 de agosto de 2018.
Cotação: 4/5
Cotação: 4/5
Análise precisa do filme. Interessante é que a grande parte dos comentários sobre o filme focam na viagem do filho primogênito. A crítica do Marco vai infinitamente além deste fato. Como é importante este tipo de análise que nos aponta elementos, muitas vezes subjetivos, fundamentais para o entendimento e apreciação da obra. Preciso ver o filme de novo, com certeza.
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