Cobertura por Marco Fialho
O nono dia do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foi marcado por dois documentários bem díspares entre si: Humberto Mauro, exibido na mostra, dirigido por André Di Mauro; e Bixa Travesty, da mostra competitiva, dirigido por Kiko Goifman e Cláudia Priscilla.
Assistir ao filme Humberto Mauro em pleno Festival de Brasília foi uma experiência fantástica. O diretor é sobrinho-neto de Humberto Mauro e realizou uma obra inteiramente apaixonada, carregada de emoção, e esse sentimento fez com que o afetivo prevalecesse na abordagem.
Há uma escolha por uma narrativa bem fluida, onde é dada prioridade a uma série de imagens dos filmes do célebre diretor mineiro entremeada com depoimentos dele mesmo. A ausência de depoimentos de conhecidos ou de pessoas que trabalharam com ele pode ser considerado um dos trunfos do filme, pois não se buscou realçar o valor de Mauro pela voz de outrém, mas sim exclusivamente pela sua própria.
Ver e ouvir Humberto Mauro são os poucos elementos que o filme nos oferece. Pode-se afirmar o quanto saudável e verdadeiro ficou o resultado final dessa obra. Nota-se ainda o quanto a montagem do diretor constitui uma peça fundamental para se refletir acerca de seu cinema.
Mauro durante sua longa trajetória mostrou-se muito sensível e atento a tudo que ocorria a sua volta. Sua relação afetuosa com o mundo impregnou o seu cinema. Antes de tudo era um grande observador, em especial da natureza. Segundo ele, "se você não filma a natureza tal como ela se apresenta já era. Por isso a gente tem que surpreender a natureza, pois nunca mais ela será a mesma. Para filmar uma cachoeira eu me escondo atrás de uma árvore". E ele ainda completava assim essa sua ideia acerca da natureza: "o progresso é anti-fotogênico".
O documentário de Andre Di Mauro explora bem o quanto a história de Humberto Mauro se confundiu com a do cinema brasileiro. Ele iniciou sua carreira ainda no cinema silencioso e ela se estendeu até o final de sua vida. Seu papel no INC (Instituto Nacional do Cinema) a partir de 1936, possibilitou que pudéssemos nos enxergar culturalmente. Mostrou que falar do regional era também esmiuçar e participar do nacional. Pensar Mauro é lembrar do nosso movimento modernista, pois foi isso que ele fez pelo nosso cinema, colocá-lo na pauta modernista. Foi talvez para o audiovisual, o que foi Mario de Andrade para a musicologia e a literatura.
Seus documentários foram cruciais em nos revelar enquanto país, em reforçar quais eram nossas bases de formação e conformação. Ele dizia que documentário não era para falar muito, mas sim para mostrar. Valorizava o enquadramento (afinal, amava a fotografia) e a montagem nos seus filmes. Claro, afinal queria expor nossa cultura, acreditava no poder do nacional e que esse era o papel das artes, revelá-lo, trazê-lo à tona. Baseado nessas crenças criou a série Brasílianas, inteiramente dedicada a revelar nossa rica e múltipla cultura.
Enfim, falar desse ícone, precursor dos mais profícuos do nosso cinema é fundamental. Se Mário Peixoto, com apenas seu clássico Limite, nos trouxe uma visão vanguardista para o nosso cinema, Humberto Mauro nos deu uma proposta de representação ampla a partir das imagens poéticas sobre nós mesmos, fez um mergulho épico e sensual em nossas mais profundas águas. Por isso, nunca é demais lembrar sua mais famosa fala: " o sujeito vê uma cachoeira e pensa em cinema. Cinema é cachoeira". E assim, com Humberto Mauro foram plantadas as raízes do nosso cinema, como bem lembra Alex Vianny.
O poder agora é outro, é o da afirmação de identidade, ou de sua total dúvida, destruição ou mesmo o da desconstrução do próprio gênero humano. Como bem afirmou a personagem Linn da Quebrada em seu discurso, durante a apresentação do filme, "eu vim pra vencer, destruir. É claro que eles estão com medo, eu também estaria no lugar deles!".
Se muitos dizem que o filme documentário precisa de personagens fortes, esse não é o problema de Bixa Travesty, de Kiko Goifman e Cláudia Priscilla. Linn domina a cena do início até o último suspiro desse filme que é pura dinamite. Linn parece ter o controle de tudo e como uma âncora centraliza tudo nela. O filme acredita em seu discurso e se entrega a ela. São 75 minutos de um exercício de autocentrismo, de não perder o domínio da afirmação de sua auto-imagem.
Ao dar total espaço a Linn, os diretores a constroem como uma pensadora, uma ativista poderosa e com uma língua afiada. Aliás, língua é pouco. Quando falamos de Linn falamos sempre do corpo, pois assim ela se mostra, sempre inteira, seja com seu lado performático, seja como pessoa que tem consciência de que sua personagem já está para além de sua pessoa. É algo que está posto em um outro lugar. Nunca sabemos quando estamos diante de um discurso, pois a simples presença de seu corpo já parece efetivar um discurso.
O que o documentário faz é buscar o papel não do corpo de Linn perante o mundo, mas sim o de todos nós. O corpo, assim parece querer se ressignificar, ou melhor, precisa. Linn implode as discussões de gênero, o corpo não é algo sobre o qual precisamos nomeá-lo de algum jeito, ele simplesmente o é. Depilar e tomar hormônios são dúvidas, afinal o corpo não precisa se enquadrar como um produto ou discurso para ser vendido na esquina, televisão, internet ou cinema.
Tudo em Bixa Travesty é over e performático. Claro, não poderia ser diferente, pois assim é a própria Linn. Ela aparece de diversas formas no documentário, ora comandando um programa de rádio, ora como performer e cantora em seus show, ora em casa, com sua mãe e amigas como Lineker, ora em um hospital tratando de um câncer. Em todas elas Linn mostra seu lado performático e destila sua filosofia sobre si mesma. Sua inteligência, beleza e presença ilumina a tela. É impossível não se impactar de algum modo com o que vem com tanta força da tela. A língua, a boca, as pernas, o pau, o saco, os cabelos, a bunda, o cu. Linn é tudo isso e mais o que se queira pensar ou dizer.
Linn está assim no filme, plena, se nomeia bixa travesty e essa grafia com x e y é fundamental, pois ela reafirma que esses corpos precisam ser renomeados mesmo, precisam ser postos em outro lugar. A gramática representa uma recolocação léxica para algo que já está posto no mundo. Como bem diz Linn os armários foram quebrados.
Mas o mais importante no filme vem da dúvida sobre o que é o corpo, de quem tem autoridade para nomeá-lo ou classificá-lo, ou ainda pô-lo em alguma forma. Ao final, a dúvida continua em nós, mas parece que Linn já está em outra discussão, afinal ela não precisa perguntar o que é, apenas ela integralmente é. E é isso que o filme permite que ela seja.
Visto no Festival de Brasília, dia 22/09/2018.
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