Pular para o conteúdo principal

8° dia da Cobertura do Festival de Brasília


A sobrepujança do discurso da imagem  em três filmes

Crítica de Marco Fialho

O oitavo dia do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro começou com um filme goiano, Dias vazios, dirigido por Robney Bruno Almeida, adaptado do romance Hoje está um dia morto, de André de Leones. O filme fala da dureza que é ser jovem numa cidade do interior, onde as perspectivas de futuro são poucas e acachapantes.

A crítica social é um dos grande trunfos do filme. A cada cena, Robney insere detalhes e informações que lentamente vão desenhando um castelo encantado prestes a ruir. Uma arma poderosa são os próprios jovens, personagens precisos para se construir importantes reflexões sobre o inconformismo.

Robney opta por dividir a história em capítulos, opção até questionável, visto que ela não traz grandes contribuições para o todo. Mas o grande interesse do filme estão nos personagens Daniel e sua namorada Alanis. Através deles vários elementos simbólicos são destilados e bem desenvolvidos.

Quando a narrativa assume o ponto de vista do livro de Daniel, o filme adquire uma nova direção, já que a imaginação assume o controle da ação. Fato e fabulação se misturam, o que torna tudo mais rico. Subjetividades afloram e tudo caminha para o imprevisível. Robney começa então um jogo criativo entre a escrita literária e a adaptação cinematográfica, entre invenção e literalidade.

Outro dado importante é o da concepção de tempo do filme. Robney aproveita bem o fato de que pouca coisa acontece numa cidade pequena e valoriza ao máximo isso, incorporando à trama um ritmo lento que acresce muito à sua proposta dramatúrgica.

Como boa parte da história se passa em uma escola católica, Robney explora com precisão na direção de arte todas as contradições possíveis entre as falas e as imagens, onde a presença de crucifixo em ambientes fora da escola nos fazem remeter imediatamente à educação religiosa dos personagens.

Dias vazios nos faz lembrar a célebre série Twin Peaks, de David Lynch, ao desmontar algumas contradições inerentes a uma sociedade linda na superfície, mas podre e hipócrita por dentro. Não à toa, a cada cena o discurso da madre diretora da escola vai se esfacelando e se demonstrando inócuo. Robney nos mostra que a idolatria absoluta de que no interior que encontramos uma vida saudável do que nas grandes cidades, não se sustenta enquanto discurso.

O segundo filme visto foi Inferninho, de Guto Parente e Pedro Diógenes, do coletivo Alumbramento, do Ceará, exibido dentro da mostra Caleidoscópio.

Os diretores conseguem fazer de Inferninho uma ode ao amor, com personagens expressivos vindos do submundo, os renegados pela sociedade, os que habitam um inferninho bem pé de chinelo. Parente e Diógenes fazem desse microcosmo seu todo, o abraçam ternamente, como ele se bastasse em si mesmo e isso faz a diferença.

Para a construção desse universo único e surpreendente, os diretores investiram forte na proposta do cenário do inferninho, bastante estilizado e não realista, assim como as interpretações, que igualmente, fogem de uma concepção naturalista e realista, onde as cores explodem na tela e reforçam uma atmosfera kitsch.

Sem dúvida, os personagens são uma atração à parte. Sempre há neles algo de lúdico e performático, a começar pela protagonista Deusimar, dona do tal inferninho, uma trans. Mas outros merecem citação, como o coelho, o Mickey, o homem-aranha, o Wolverine, Batman e Darth Vader. Para completar uma cantora decadente e desafinada de cabaré chamada Luiziane, e Jarbas, um marinheiro que parece fugir de algumas dívidas contraídas.

Sinteticamente, Inferninho é uma obra bem acabada, delicada, amorosa e que consegue nos fazer afeiçoar com personagens do submundo, marcantes e ávidos por viver sonhos. As cenas onde Deusimar passeia pelo mundo é belíssima. Mas melhor dizendo, acredito que os diretores fazem o mundo visitar Deusimar, numa singela homenagem realizada à beleza de viver.

O terceiro filme do dia foi o delicioso  Temporada, do diretor mineiro André Novais Oliveira, da produtora Filmes de plástico. A sua estrutura parece de uma aparentemente e enganadora simplicidade.

Na verdade, o esforço do cinema que Novais vem percorrendo é o de tentar reconstruir o cotidiano, sempre de pessoas simples e que vivem nas periferias. Há nessa proposta um requinte fora do comum, a cada plano do filme sente-se isso.

A história se passa em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. Parece que o diretor quer realizar um tipo de inventário do viver, não necessariamente da vida como ela é, mas sim da vida como a sentimos. Novais faz esse cotidiano nos soar familiar e íntimos, por isso a ideia de incorporar em sua obra a própria maneira de falar do cidadão da periferia.

Um personagem fundamental para a estruturação do filme é o Russão. Ele tem o jeito de falar e expressar do homem simples e humilde. Ele também tem uma posição dentro da narrativa de ser o alívio cômico, o que arranca belas gargalhadas do público.

É muito prazeroso assistir a cada novo trabalho o amadurecimento de André Novais. E agora em Temporada, praticamente não temos um discurso aberto e explícito por bandeiras. Mas isso não quer dizer que Novais está alheio à elas, muito pelo contrário. A escolha da excelente Grace Passô para o elenco já diz muito sobre. Todavia Novais visivelmente prefere criar seu discurso pela imagem e de forma orgânica. E isso fica claro na maneira na qual ele filma a única cena de sexo de Temporada. Mostrar a beleza de um casal negro trepando já seria um ato político em si, porém, o fenomenal é que são corpos totalmente fora dos padrões socialmente instituídos. Difícil mensurar a contribuição que essa cena representa para o cinema brasileiro, e até mais, para a nossa sociedade secularmente retrógrada.

Essa cena citada acima atinge o nervo da discussão, e sua potência está justamente na desconstrução da padronização que sustenta um determinado modelo de beleza, que ratifica o colonizador branco e europeu, e mais ainda, implica em diversos níveis sobre o que deve ou não ser consumido e admirado pela sociedade. Esse ponto de vista não é somente extremamente necessário, mas sobretudo politicamente urgente.

A força e a potência do cinema de André Novais Oliveira pode ser aparentemente simples na sua realização. Entretanto, ao se analisar os meandros de sua obra descobre-se o quanto robusta ela é. O que prova que a leveza também pode trazer um discurso poderoso. Em especial quando o discurso da imagem prevalece sobre o que é dito em palavras, o que felizmente é o caso de Temporada.

Visto no Festival de Brasília, em 21/09/2018.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...