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7° dia de Cobertura do Festival de Brasília

Quando a política encontra Dionísio e um operário-zumbi.

No sétimo dia do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro três filmes foram vistos: Sol Alegria, da mostra Festivais do Festival; Sonâmbulos, da mostra Caleidoscópio; e A Sombra do Pai, da mostra Competitiva.

Sol Alegria é daqueles filmes surpreendentes, que buscam na invenção e criatividade soluções para produção. Imerso em uma linguagem transgressora, ora teatral, ora circense, ora operística e ora musical, a trama gira em torno de uma trupe teatral familiar que guiados por um mapa sai em busca de um lugar idílico para fugir do mundo opressor, comandado por militares e pastores evangélicos. Um road movie que muito lembra a Caravana Rolidei, de Bye Bye Brasil. Inclusive, difícil não lembrar do personagem de José Wilker ao assistir Sol alegria.

Alegórico e cheio de referências cinematográficas, Sol Alegria flerta com uma ambiência selvagem à moda Jodorowsky e se utiliza de citações que remetem a Glauber Rocha (Terra em Transe), Joaquim Pedro (Macunaíma), Zé Celso, Sérgio Leone e Almodóvar.

As citações musicais dialogam e enriquecem a narrativa de Sol Alegria, como a excelente versão em português para Alabama Song (whisky bar), de autoria de Kurt Weill, composta para uma peça de Bertolt Brecht e imortalizada no álbum de estreia, de inspiração psicodélica, da banda The Doors. Mutantes, Ennio Morricone e Violeta Parra também enchem a tela de irreverência ritualística, deboche e transe dionisíaco.

A imagem também é outro destaque dessa produção artisticamente rica em cores, objetos e cuidado cênico, onde cada cor, em especial o vermelho, contagia e impregna tudo. Coca-Cola, um Batman estilizado, bananas e back projection completam esse carnaval fora de época chamado Sol Alegria. Destaque para a cena em que a personagem de Mariah Teixeira transa com o sol, onde o diretor de fotografia Ivo Lopes Araújo esbanja competência, com um controle absoluto da construção da cena.

Freiras armadas e plantadoras de maconha se somam a personagens incomuns, como o poeta toreador, interpretado por Ney Matogrosso. Há uma frase dita que muito diz sobre o filme: "não há nada de natural na natureza". Outra frase igualmente sintética: "amo tudo que desconheço". Em tempos onde todos só querem reforçar o que pensam, essa é uma sentença que precisa ser dita e redita sempre.

Outro filme visto hoje foi "Sonâmbulos", dirigido por Tiago Mata Machado, obra que se relaciona diretamente com os nossos tenebrosos dias sem perspectivas de saída. Nele, diante de tantos descaminhos, um grupo se organiza para orquestrar suicídios políticos.

O que incomoda no filme é a total falta de esperança para a qual aponta. Nenhuma ínfima luz é lançada em "Sonâmbulos". Mas esse lugar do incômodo está presente na própria textura dessa obra. Tudo ali conspira para nos afetar como espectadores. A narrativa, nas suas duas horas de duração, ressoa basicamente uma voz interna dos personagens. Essas falas reforçam a crise pela qual eles passam. Já o tom e a construção dessas falas nos remetem ao texto literário preciso, que nos arremessa a um mundo no qual identificamos de imediato como também nosso.

A imagem de "Sonâmbulos" acentua esse clima de desesperança. Quase todos os planos são escuros, filmados com muitas sombras e com um predomínio de um amarelo mais fechado.  O desenho de som possui muitas camadas e misturas de sons diversas, pensadas para criar uma atmosfera pesada e angustiante.

Filosoficamente, o filme revela um imobilismo, pessoas que embora revoltadas, não conseguem criar mecanismos eficazes de luta. Parece haver uma afirmação de um determinado discurso que na prática não é consequente. São todos demolidores do mundo que reiteram a derrota de nossos ideais nesse momento. Ao mesmo tempo que isso possui uma beleza, também não deixa de esconder um perigo latente.

O filme visto da competitiva foi A sombra do pai, novo trabalho da incensada Gabriela  Amaral Almeida, que recentemente dirigiu o sucesso O animal Cordial. Comparando as duas obras, nota-se um refinamento da diretora nesta nova obra, um movimento para o lapidar seu cinema. Trata-se agora mais de uma proposta do sobrenatural do que realmente de um terror mais pungente e violento, como revelou sua obra anterior. Nesse agora, o psicológico impede que o filme descambe para um estilizado slasher que soou como deveras artificioso em O animal cordial.

Mas de qualquer forma, o peso da história está garantido. Morte, visões e assombrações compõe essa obra esmerada, bem acabada, mas que analisada com atenção, pouco tem a nos dar para além de seu acabamento. Fica sim uma reflexão sobre a pauperização do mundo do trabalho e familiar, embora esses temas não sejam devidamente aprofundados.

Interessante as inserções que Gabriela Amaral Almeida faz de filmes clássicos do terror, como O cemitério maldito e A noite dos mortos-vivos, esse último, um clássico incontestável de George Romero. O primeiro usado como uma referência para o cemitério e a relação de Dalva (Nina Medeiros) com os mortos e o segundo para relacionar pai e filha. A própria pequena Dalva diz que o pai está virando um zumbi.

O filme trabalha com uma metáfora sutil do Brasil pós-golpe acerca do aviltamento das relações de trabalho nesse período. Evidente, que isso poderia ser mais desenvolvido, o que conferiria à A sombra do pai um peso maior.

Visto no Festival de Brasília no dia 20/09.


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