Texto escrito por Marco Fialho para o catálogo da mostra "O Lobo à Espreita: uma homenagem ao centenário
de Ingmar Bergman", em 2017.
VERGONHA (1968)
Sim, eu sou um homem e choro. Um homem não tem olhos? Não
tem também mãos, sentidos, inclinações, paixões? Porque é que um homem não
devia chorar?
August Strindberg
Vergonha é o filme de violência explícita de Bergman. Sendo
assim, é um filme direto, claro em suas propostas. Se isso, em se tratando de
Bergman, pode ser um dado inusitado, pois a mensagem explícita nunca foi o
território onde sua arte aflorou, já a interiorização dos personagens, esta
sim, sempre foi o locus do universo bergmaniano. Conforme bem analisou o
crítico Marc Gervais, Vergonha se enquadra na obra de Bergman “no que podemos
chamar de estudos cruéis e implacáveis sobre a desintegração da personalidade”.
Essa fala está no making of do DVD do filme. Essa desintegração de
personalidade, na verdade, perpassa diversas obras de Bergman. Persona, A Hora
do Lobo, A Paixão de Ana e Face a Face são exemplos dessa vertente de filmes.
Bergman via Vergonha como um filme irregular, com uma
primeira parte inferior à segunda. A primeira seria sobre a guerra, e a segunda
sobre as suas consequências. Ele dizia preferir a segunda. Isso acontece porque
a primeira é mais descritiva e factual. A segunda é onde Bergman consegue ser
analítico e nos mostrar o que a guerra pode fazer com os indivíduos, inclusive
os aparentemente pacíficos. Bergman diz em seus livros de memórias que devia
ter desenvolvido mais a segunda parte, a detalhado mesmo, e transformado a
parte inicial da guerra em 10 minutos. Na hierarquia bergmaniana, o que
importava então era o efeito da guerra nos seres humanos e não a parte
descritiva, que ocupa uma boa parte do filme.
Uma ideia que permeia Vergonha é o sentimento, a ilusão ou a
crença, tanto faz no caso, de que o isolamento, mesmo que seja em uma ilha,
seria um caminho viável para se fugir da violência, ou de um estado de guerra.
Essa era a ideia do casal de violinistas, Eva e Jan, interpretados por
Liv Ullmann e Max Von Sydow respectivamente, que após o fim da orquestra
filarmônica vão viver em uma ilha aparentemente afastada do caos que é o mundo.
Essa questão de não se envolver em conflitos é uma velha metáfora sueca, que
optou pela neutralidade durante a Segunda Guerra Mundial. Mas só que as guerras
não acabam, depois viriam muitas outras, inclusive a da Coreia e do Vietnam. O
que Bergman nos mostra é que não há essa tão sonhada neutralidade.
Outra questão fundamental é de que a cada nova guerra as
populações dos países também são envolvidas e mortas no conflito. Não tem como
os civis ficarem imunes à violência, muito pelo contrário, eles tornam-se alvos
fáceis nesse contexto. Esse jovem casal tinha seus planos e sonhos de
constituir uma família e ter uma vida tranquila, que subitamente lhes escapa. O
terror se instala, os soldados entram à revelia em seus cotidianos e impõe a
atrocidade da guerra.
Como já dissemos, Vergonha é um filme em que Bergman mais se
afasta da interiorização dos seus personagens. No início até imaginamos que
será mais um filme típico de Bergman, onde as crises desabrocham nos
personagens e que vemos e sentimos suas angústias. Mas não, o caminho dessa vez
é o da exterioridade dos personagens, eles agem e o fazem compulsiva e
reativamente. O casal Eva e Jan não tem opção, só lhe resta agir. Isso cria na
obra de Bergman um desenho diferente do seu habitual. O filme se reduz à ação
desse casal, não há elucubrações tão comuns na obra do diretor. Há uma urgência
de se colocar frente ao horror da guerra. O século 20 foi um período histórico
onde violentos conflitos aconteceram, onde milhões morreram em situação de
guerra. A primeira e a segunda guerra já bastariam como grandes catástrofes
mundiais, com o desenvolvimento de armas modernas voltadas para o extermínio em
massa. São metralhadoras giratórias, tanques de guerra, granadas, avião,
helicóptero, venenos, bombas, e mais precisamente, uma bomba assustadora, a
bomba atômica. Jamais na história a violência foi tão fácil, tão ao alcance das
mãos dos donos do poder. E há também uma nova característica, a da
impessoalidade.
Não era mais preciso matar no corpo a corpo, podia-se matar
agora à distância. Isso trazia elementos absurdamente novos, que sofisticaram o
ato de matar.
Agora o absurdo da guerra não escolhe endereço, não está
restrito às trincheiras e campos de batalha, ele está presente em qualquer
lugar. Não há como evitar a violência da guerra e isso traz uma brutalização
inimaginável ao processo. E o filme de Bergman funciona como se fora um
documentário dessa crueldade.
Trata-se de um dos mais descritivos filmes de
Bergman e a proposta de câmera ajuda bem na tradução dessa postura, ela se
movimenta mais do que o de costume em um filme de Bergman, mas a sua função é a
de documentar a desorientação do casal, ela os persegue, ela os aprisiona nesse
conflito indesejável com o mundo exterior. E o preto e branco desse filme lhe
cai muito bem, traduz bem a sua crueza, o colorido tiraria muito de seu
impacto, daria uma nuance de cor que atrapalharia o seu resultado final, o da
inevitável e irredutível destruição.
Quando a destruição realmente chega e suas casas não existem
mais, o casal Eva e Jan parte sem saber para qual direção ir, estão abandonados
no mundo. Nesse momento Jan vira bicho, sai de sua posição pacífica e parte
para agressão, chegando até a cometer assassinatos. Como um bicho acuado, Jan
se transforma e embrutece. Eva que era a princípio mais determinada se encolhe
e não suporta a violência de Jan.
Mas a sequência final é uma das mais bem pensadas do filme.
Depois de perderem tudo, inclusive a casa, Jan e Eva descobrem uma fuga pelo
mar e se juntam a um grupo de refugiados. Se em terra o que predominava era o
caos da destruição e desolação, em alto-mar não encontram nada novo, somente
mais do mesmo, o racionamento da pouca comida e corpos mortos boiando. Parece
que estão cercados. Não importa o lugar aonde vão, todos os caminhos os levam
para o mesmo lugar, a da destruição da guerra. Náufragos, sem perspectiva de
sobrevivência e futuro, resta apenas sonhar com outra realidade bem distante e
diferente desse decadente mundo.
Cotação: 3/5
Cotação: 3/5
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