
Texto escrito por Marco Fialho para o catálogo da Mostra "O Lobo à Espreita: uma homenagem ao centenário de Ingmar Bergman", em 2017.
SONATA DE OUTONO (1978)
Os filhos são educados como se fossem ficar toda a vida
filhos, sem nunca se pensar que eles se tornarão em pais.
August Strindberg
Sonata de Outono é um filme sem grandes arroubos de
produção, sendo nesse aspecto pequeno, um filme de câmara, com uma
mise-en-scéne sustentada basicamente pelos atores em cena, praticamente sem
externas, quase todo filmado em estúdio. Tem ecos visíveis de uma peça teatral.
Tanto no texto quanto na mise-en-scéne observa-se esses traços teatrais. Isso
não quer dizer em absoluto que o filme seja um teatro filmado ou uma peça de
teatro disfarçada, seria muito injusto com essa obra de Bergman tal afirmação.
Cinematograficamente sua construção é precisa, manipulada
por quem domina muito bem os recursos de linguagem para atingir o máximo de
expressão. A escolha dos planos para cada cena filmada sublinha a mensagem a
ser transmitida. Bergman usa muitos planos próximos, inclusive muitos closes.
Os planos gerais são utilizados apenas para cenas que ajudam a contextualizar a
história.
A história se resume na relação entre mãe e filha (Ingrid
Bergman e Liv Ullmann, respectivamente), a primeira uma grande artista e a
segunda uma jornalista. A filha chama-se Eva, tímida e insegura, e a mãe
Charlotte, com uma personalidade altiva, dominadora, segura de si. Elas estão
alguns anos sem se encontrar, a mãe viajando em seus compromissos
musicais pelo mundo, já a filha vivendo como jornalista na Noruega. O filme
narra o reencontro dessas duas personalidades tão distintas. A princípio tudo
parece que vai funcionar a contento, mas só que não, velhas feridas serão
reabertas e o abalo sísmico é inevitável. O filme tem basicamente dois atos. No
primeiro reina uma reconciliação esperada, depois de tanto tempo marcado
pelas ausências físicas, mas esse ato termina melancolicamente quando a filha
tenta tocar uma sonata e a mãe faz uma análise demolidora de seu desempenho
musical. O segundo ato inicia-se logo a seguir com uma crise explosiva e
violenta entre mãe e filha.
A primeira sequência de Sonata de Outono foi muito bem
pensada por Bergman, e de certo modo impressiona. Ela começa com uma imagem da
personagem de Liv Ullmann trabalhando solitariamente em sua escrivaninha
enquanto ouvimos over do narrador, que se apresenta como seu marido. Logo a
seguir sua imagem entra no quadro, e ele continua falando, mas olhando agora
diretamente para a câmera, isto é, para nós espectadores. Ele pega um livro
escrito pela sua esposa na estante situada atrás dele e começa a ler trechos
onde ela diz que busca incessantemente saber quem ela é, mesmo que de forma
trôpega. A imagem o tempo todo está focada no primeiro plano do marido, mas lá
no segundo plano, bem ao fundo, vemos a personagem de Liv Ullmann desfocada, de
vestido vermelho. Essa imagem singela, exposta assim logo na primeira sequência
sintetiza bem o filme. Uma mulher em busca de construir sua identidade.
Sonata de Outono é uma obra bem representativa do universo
bergmaniano. A relação do indivíduo com as amarras morais forjadas durante seu
processo de formação como ser humano até chegar à idade adulta, tendo no caso a
família, a escola e a religião como pilares e responsáveis na construção desses
arcabouços constitutivos de nossa existência. São valores muitos deles
introjetados violentamente, são culturais, mas tratados sempre como naturais,
dos quais são difíceis de se livrar, que são levados com os indivíduos e depois
repassados adiante na idade adulta como verdades inquestionáveis e absolutas.
Nada mais Bergman do que a fartura de closes e planos
próximos como recursos narrativos predominantes. Mas a câmera movimenta-se
bastante, ela se coloca no mesmo patamar de instabilidade dos personagens e
traduz os seus conflitos emocionais. Há uma alternância proposital da câmera
fixa e do movimento, muitas das vezes há um contraste na mesma cena em que a
câmera começa parada até que realiza um movimento brusco, que nos chama a
atenção para uma mudança psicológica das personagens. Muitos desses movimentos
são feitos com a câmera na mão, evitando o clássico uso do plano/contraplano.
Outro personagem importante para o filme é o de Helena,
filha de Charlotte e irmã de Eva, que vive entrevada na cama e em uma cadeira
de rodas. Ela perdeu a coordenação motora e da fala, mas é construída como uma
personagem chave para a compreensão do filme, por simbolizar a própria
incomunicabilidade da família, sintetizar a difícil relação da mãe com as
filhas. Não à toa, a mãe egocêntrica e egoísta a internou em uma clínica de
repouso, para não precisar mais vê-la. Mas Eva tira Helena da clínica e a leva
para sua casa para cuidar pacientemente dela, para o desespero da mãe, que
desconfortavelmente é obrigada a conviver novamente com um ser no qual ela não
consegue estabelecer uma relação de afeto. A questão do afeto em família é um
tema bem presente nas obras de Bergman e em Sonata de Outono não é diferente.
Eva cita para mãe alguns exemplos de sua ausência devido às longas viagens, mas
também ausências quando ficava em casa ensaiando, e dando pouca atenção às
filhas. São fatos passados na infância dos personagens, época de grande
interesse a Bergman por serem decisivos na formação emocional dos seres humanos
e interferindo em suas capacidades de amar.
A cada cena do filme Eva vai expondo seus recalques e
despejando suas dores de filha à mãe, como se aquele fosse o único momento
possível para extravasar todas as suas mágoas e rancores. A mãe aparentemente
suporta toda a pressão da filha, mas aos poucos, em pequenos detalhes, nos
mínimos gestos, Bergman vai nos dando indícios de que a altivez da mãe está
prestes a desabar, e claro, desaba. A mãe fala de sua infância, o quanto que os
seus pais a desprezavam, não lhe davam amor e dos momentos de insucessos na
carreira. Há também uma revelação, quando Eva expõe à mãe um fato do passado, a
paixão de Helena pelo segundo marido da mãe e revela que a impossibilidade
desse amor é que causou a doença da irmã. Abalada com tantas revelações
inesperadas a mãe vai embora e volta para a sua rotina.
Curiosamente Bergman subtrai a música do filme, a não ser
quando algum personagem toca piano diegeticamente. Mas isso não quer dizer que
a parte sonora está ausente da obra. Muito pelo contrário, o que Bergman nos
propõe é um arranjo sonoro calcado em vozes, murmúrios, gritos, gemidos e
especialmente silêncios. Os silêncios são perturbadores, são notas expressivas
no filme e a falta da música salienta os preciosos silêncios entre as falas dos
personagens. Há ainda abundantes monólogos reflexivos, com as personagens da
mãe e da filha conversando em voz alta, ou apenas dizendo seus pensamentos em
voz off sobre os seus problemas e angústias.
Sonata de Outono é uma obra dura, densa, psicológica,
essencialmente bergmaniana, mas marcada por um final surpreendentemente
esperançoso, que acena para uma possibilidade de reconciliação aparentemente
improvável entre mãe e filha. O último olhar da mãe lendo a carta de Eva é
enigmático, mas talvez deixe escapar um quase sorriso, ou será esse discreto
sorriso uma ilusão, apenas um desejo nosso como espectador?
Cotação: 4/5
Cotação: 4/5
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