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FACE A FACE - Direção de Ingmar Bergman


Resultado de imagem para Face a face Bergman

Texto escrito por Marco Fialho para o catálogo da Mostra "O Lobo à Espreita: uma homenagem ao centenário de Ingmar Bergman.


FACE A FACE (1976)

A verdade é sempre desaforada.
August Strindberg

Na filmografia bergmaniana Face a Face está entre os filmes de maior densidade emocional, tal como Gritos e Sussurros e Sonata de Outono. Mas o que diferencia Face a Face desses outros dois é a personagem Dra. Jenny Isaksson, interpretado por Liv Ullmann. Jenny é uma psiquiatra, razoavelmente bem sucedida, mas que vive também sérios problemas psiquiátricos, vítima de uma depressão profunda. Mais uma vez Bergman constrói uma personagem perturbada com o seu passado e assombrada com fantasmas, que teimam em rondar seus pensamentos e seu inconsciente. Incrível como Liv Ullmann consegue tornar verossímil essa personagem, transferindo vigorosamente essa energia para o espectador, tal o sufocamento vivido por Jenny. É sabido o quanto Bergman filma rostos humanos como poucos, em especial os femininos, e extrai deles expressões significativas, olhares profundos que muito nos comunicam. Mas a potência interpretativa atingida no close que Bergman dá na personagem Jenny só é possível devido ao empenho e trabalho que Liv Ullmann faz na sua construção e muito pelo seu entendimento acerca de quem é Jenny, quais as suas contradições como ser humano. Nota-se que a leitura de Ullmann da personagem é integral, e que mesmo que a câmera esteja fechada em um close, dá para sentir que ela está ali atuando com o corpo inteiro.

A primeira imagem do filme pode parecer banal, mas vale ressaltá-la e resgatá-la, pois a singeleza pode passar despercebida. O filme começa com o rosto de Jenny, e ela olha para a câmera, que se afasta. O olhar de Jenny se desvia da câmera em um ato de visível insegurança e fragilidade. Logo em seguida, ainda sem ter um corte no plano, ela coloca seus óculos escuros, mas o local é um apartamento vazio, isto é, um espaço interno, que em nada se justificava a colocação de óculos escuros. Chamamos atenção para esse detalhe por ele revelar um tanto sobre essa personagem. Ao contrário de “A Hora do Lobo”, que a mesma Liv Ullmann também olha para a câmera na primeira sequência e inicia a narração sobre a história que será contada no filme, em Face a Face há essa sutil mostra de uma personalidade frágil, que não demonstra segurança sobre os seus atos.                   

A segunda sequência do filme mostra Jenny tratando de Maria, sua paciente mais problemática, que se encontra fechada para o mundo. Jenny esforça-se para abrir uma comunicação, mesmo que incipiente com Maria. Surge então uma inesperada revelação. Durante uma sessão de tratamento Maria olha para Jenny com um olhar diferente, como se a relação paciente/médico fosse momentaneamente invertida. Não obstante, ela pronuncia “pobre Jenny… pobre Jenny”, acariciando ternamente o rosto da médica. E essas demonstrações de fraquezas emocionais de Jenny parecem ficar evidente a cada nova cena do filme.

Mas o filme não fica apenas nas evidências. A loucura é tratada de frente, e de forma incisiva. Bergman trabalha em detalhe as imagens do filme. O marido de Jenny é um alto executivo, que mais viaja a trabalho que fica em casa. Jenny decide então passar uma temporada na casa dos avós. Sinistramente, o prédio onde moram seus avós parece uma catedral, com seus vitrais renascentistas. Logo de cara Jenny se depara com uma sinistra senhora com o olho esquerdo todo preto, que depois saberemos que era a representação da morte. Essa chegada na casa dos avós é muito significativa no filme. Jenny encontra seu quarto como era em sua infância, preparado assim pela sua avó. Esses são os elementos básicos e detonadores da crise emocional que se avizinha. Esse encontro surpreendente com o passado reaviva lembranças intensas, a maioria delas catastróficas para a saúde mental de Jenny, algo de sombrio parece espreitar o ambiente e a personagem. Um dos pontos mais interessantes de observar em Face a Face é o olhar de Jenny, de como estão impressas ali sutilezas da personagem. E nos parece que esse foi um trabalho sugerido pela direção de Bergman, porque ele não é pontual, mas sim marcado em diversos momentos do filme.     

O pensamento sobre o tempo está muito presente nos filmes de Bergman. E em Face a Face não é diferente. Tal como em Gritos e sussurros, o som do relógio é algo frequente, sinalizando esse tempo que não para nunca, que sempre caminha para frente, de forma a nos oprimir. Há uma sequência noturna onde seu avô vai dar corda no relógio da sala e Jenny observa tudo à distância. O avô diz: “a velhice é um inferno”. O fato é que o avô está perto da morte, seu tempo está se esgotando e esse gancho sobre a finitude desse personagem tangencia todo o filme. Esse acompanhamento que Bergman faz do personagem do avô é tão importante no todo que lá no fim do filme ele também está presente. Há uma diacronia em relação ao casamento. Os avós vivem de forma fraternal, compreensível e unida; já Jenny e o marido mal se veem, são distantes e mal parecem um casal. Parece que Bergman estabelece uma diferença entre os casais: os de hoje que priorizam o mundo do trabalho e do bem-estar financeiro, e os mais idosos vivendo sob uma ótica mais humanista, familiar e gregária. O que Jenny procura em Tomas, um suposto amante, personagem interpretado por Erland Josephson, é simplesmente afeto, não é sexo, mas sim algo que ela não tem em sua relação familiar. Em seus sonhos sua mãe sempre aparece como se estivesse a julgando com os olhos. A origem da depressão de Jenny está relacionada a um recalque na infância, e durante o filme essa ideia vai se materializando, vão surgindo assim os penosos castigos impetrados por seus pais quando ela era criança.    

A sequência da tentativa de suicídio de Jenny é muito bem pensada e filmada. Após tomar uma overdose de remédios ela começa a passar os dedos no papel de parede. A câmera acompanha esse movimento, mas continua seguindo os desenhos da parede até que vem um fade-out e entramos no inconsciente de Jenny. Com a ajuda dos remédios entramos nas partes mais sombrias de Jenny. A fotografia na penumbra reforça a imagem soturna e o figurino em vermelho de Jenny contrasta com o cenário lúgubre. A câmera a acompanha, mas ela é mera espectadora em seu sonho, ou no seu limbo, visto que ela está em uma espécie de coma devido ao excesso de remédios ingeridos. Mas nesse ambiente ela pode abrir a porta do desconhecido (a morte) ou voltar e enfrentar os medos já conhecidos. As duas opções são desagradáveis, mas o que há depois da finitude do corpo é o maior mistério de todos. O clima de horror prevalece nessa sequência, com cenas fortes e aterrorizantes, a exemplo da cena em que ela chega na clínica com todos os seus pacientes aglomerados nesse pequeno espaço, inclusive seu avô, temeroso com a ideia da proximidade da morte. Não há em Face a Face nenhum momento de respiro. Durante mais de duas horas Bergman mantém um clima pesado e sufocante no filme, o que o torna uma obra difícil de ser assimilada.               

Essencialmente, Jenny é uma mulher desamparada. Seu marido a abandona descaradamente em prol do dinheiro e da carreira. Ela é massacrada pela sociedade machista que não aceita a mulher emancipada. O peso de ser mulher na contemporaneidade é forte e ela sente isso na pele. Ela se cobra como mãe e como filha e leva um susto grande quando escuta da filha que ela se ressente de seu amor e que tem certeza de que não é amada por ela. Mas apesar de toda carga negativa existente no filme, o final nos deixa um lampejo de esperança na possibilidade de um entendimento entre as pessoas. A sequência final é dedicada aos momentos finais da vida do avô, mas Jenny observando o carinho, o cuidado e a paciência da avó pensa alto para que todos possamos ouvir:  “Tudo está envolto no amor...até a morte.”  Esse é um pensamento que carregamos conosco ao acabar o filme.  

Face a Face foi muito criticado em seu lançamento. Os críticos acusaram Bergman de ser repetitivo, de repisar seus velhos temas. O próprio Bergman já declarou que só gosta do filme até a tentativa de suicídio de Jenny, mas que depois ele perde a mão. Talvez ele tenha até alguma razão em sua observação e autocrítica, porque há mesmo um desnível entre essas duas partes, mas a obra possui uma inegável densidade. A acusação de repetição é infundada, pois a maioria dos diretores reconhecidos pelas suas obras são assim, elegem seus temas e o trabalham sob vários ângulos. Afinal é isso que Bergman faz nesse filme ao abordar a crise psíquica de Jenny de uma forma totalmente verticalizada, sem rodeios. E esse é o valor intrínseco a Face a Face, o da coragem de mergulhar em um tema árido como o da depressão e ainda conseguir nos lançar um sopro de esperança na humanidade. 

Cotação: 4/5

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