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OS INCONTESTÁVEIS - Direção de Alexandre Serafim



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Crítica escrita por Marco Fialho

Uma salada capixaba com eucaliptos, maverick, coronéis e temperada com cenas de machismo explícito. 

"Os incontestáveis" é um marco para o cinema capixaba. Deve-se registrar o quanto raro é vermos um filme do Espírito Santo chegar ao circuito comercial brasileiro. No máximo, esse tipo de filme fica restrito ao ambiente dos festivais e mostras de cinema. Esse é um ponto a ser registrado e valorizado para o diretor Alexandre Serafini, pela coragem de se tornar um realizador de longa-metragem em um contexto com imensas dificuldades de produção.

Quanto ao filme, logo no seu início nota-se um grande esforço de superação de toda a equipe. Há um visível clima de produção no esquema de guerrilha que vai impulsionando tudo para frente. "Os incontestáveis" se configura como um típico road-movie.

No enredo, tudo gira em torno de dois irmãos, Bel e Mau que vão em busca de um carro antigo, um Maverick 1977, que fora de seus pais. Por incrível que pareça, no meio de tanta violência e rusticidade, contraditoriamente, é uma motivação afetiva que faz os personagens avançarem na história. Há um fato curioso no elenco, Bel é interpretado por Fabio Mozine, baixista da banda cult capixaba de hardcore chamada Mukeka di Rato. Entretanto, à margem dessa informação curiosa, no que tange ao trabalho de atores nota-se uma distância expressiva entre o elenco escolhido. A mistura de atores profissionais com não-atores em alguns momentos cria desníveis latentes, caso nítido de quando Tonico Pereira e Fenando Teixeira contracenam com os dois atores protagonistas.
                      
Mas há outros momentos interessantes. Um deles quando os dois irmãos chegam às cidades do norte e começam a esbarrar com diversos personagens tétricos e deploráveis, muito representativos do universo rural brasileiro, que adotam comportamentos típicos da nossa cultura coronelista. Políticos, fazendeiros e outros tipos semelhantes aparecem com sua arrogância e poder desmedido.

Os enquadramentos e movimentos de câmera não surpreendem muito e se aproximam dos diversos clássicos do cinema de estrada, assim como a trilha musical calcada no velho e bom rock n'roll. O filme tem três momentos distintos delineados: o da decisão de ir atrás do carro do pai, a busca em si na estrada pelo carro e uma última que resgata o movimento social do Contestado, ocorrido entre os anos 1940 e 1960 nos limites entre o Espírito Santo e Minas Gerais.

Justamente essa última parte pode ser considerada a mais problemática, pois ela parece iniciar uma outra obra, com uma concepção totalmente diversa das anteriores, o que gera um notório desequilíbrio no todo. O próprio estilo cinematográfico se transforma, de repente temos a impressão que mergulhamos em um filme do "udigrudi", realizado em pleno anos 1970. As interpretações e a própria mise-en-scéne ficam mais livres, cria-se uma atmosfera delirante e a história do filme se perde na intromissão de uma questão histórica mal amarrada. Esse resgate do Contestado vislumbra-se completamente desconectado do todo e o que transparece para o espectador é a sensação de um delírio que não vem da tela, mas sim de fora dela. Tudo soa como algo inserido de maneira forçada ao bel prazer do diretor e as consequências são determinantes para uma não fluidez narrativa.

Há um clima de que esse é daqueles filmes de macho feito para macho, e isso salta da tela de forma verborrágica. Mas talvez isso não tenha sido sequer planejado, apenas espelha o perfil do próprio realizador. Por isso mesmo, vem sendo destacado o papel relegado às mulheres no filme, onde todas são prostitutas e parecem existir apenas para servir e satisfazer aos prazeres masculinos. Ainda que isso mostre um lado machista e violento do local retratado, também fica evidente a falta de um tratamento mais crítico do roteiro e da direção em relação ao tema. Isso traz duas reações imediatas do público. Uma que enaltece o fato, pois considera que "homem é assim mesmo", e outra que se sente profundamente incomodada com essa construção de personagens. Assim, o filme termina por cair nos mesmos equívocos nos quais denuncia, por não conseguir correlacionar a crítica social machista aos desmandos da elite rural capixaba. Não enxergar nesse ponto origens comuns. Então, o filme não ultrapassa a superfície. Se por um lado critica os coronéis, por outro lado endossa a herança machista deles no tratamento dado às personagens femininas do filme.   

Todavia, apesar desses deslizes significativos, "Os incontestáveis" possui também pontos interessantes. Um deles está no fato de aproveitar o filme de estrada para nos revelar um pouco de um desconhecido norte do Espírito Santo. Essa viagem de carro se torna nossa também ao nos por em contato com uma realidade cruel, nos entranhar com relações de poder e mando bastante autoritárias e imersas em uma eminente violência. Nesse aspecto, Serafini acerta em cheio ao nos mostrar uma terra de ninguém, um local onde segundo um próprio personagem diz: "o Espírito Santo é uma terra onde só tem eucalipto e filho da puta". Em uma primeira leitura, o bordão pode até soar como divertido, todavia esse humor ácido e rústico reforça a agressividade em relação às mulheres, apesar de também expressar muito uma determinada visão que o diretor quer construir acerca de seu Estado de origem.

Apesar de todas as questões aqui levantadas, umas de caráter estético e estilístico, de dimensões mais dramatúrgicas, e outras voltadas mais para a concepção ideológica do filme, deve-se saudar a chegada de uma obra capixaba ao circuito comercial. Infelizmente a grande potência de denúncia social de "Os incontestáveis" naufraga por escolhas equivocadas já mencionadas. Mas fica-se a impressão que essa produção abrirá as porteiras para novas realizações, afinal, o Brasil precisa descobrir melhor esse fascinante Estado de nossa federação, tão repleto de contradições sociais. O que de certo não é um atributo exclusivo dele.

Visto na Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2017. 
Cotação: 2/5           

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