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ONDE ESTÁ VOCÊ, JOÃO GILBERTO? - Direção de Georges Gachot



Crítica escrita por Marco Fialho

Um Ho-Ba-La-Lá afetivo e inocente

"Onde está você, João Gilberto?" é um filme de afetos. Gira em torno dele de maneira descarada e desavergonhada. Há um humor evidente no título e quase uma constatação de que João não será encontrado pelo diretor francês Georges Gachot, um apaixonado pela nossa música. O viés cômico  prevalece em todo o filme, em uma busca carinhosa e insana por encontrar seu ídolo. Por isso, o próprio diretor assume a narração em primeira pessoa do filme, o que deixa claro a sua proposta  pessoal de falar do tema.

Mas antes de ser uma busca por João, o filme de Gachot procura os rastros deixados pelo livro "Ho-Ba-La-Lá", escrito pelo alemão Marc Fischer. No livro, a narrativa está centrada na procura por João Gilberto, sendo que Fischer incorpora Sherlock Holmes, com a ajuda de uma Watson brasileira. O filme então torna-se muito mais sobre a paixão de Fischer por João Gilberto e pela música brasileira que estourou mundialmente com "Chega de saudade" do que pelo próprio João.

O que incomoda na narrativa é essa quase repetição de tudo que está no livro, não há uma tentativa criativa de se construir algo inspirado na imersão de Fischer, mas sim na obsessão de seguir seus caminhos e sua procura por João Gilberto. Gachot refaz as andanças feitas pelo escritor alemão e busca as mesmas pessoas e lugares. As tentativas de contato com João não chegam realmente a esquentar em nenhum momento, o que fica claro desde o início de que Gachot ficará sempre contornando João, como se ele fosse tão somente um fantasma que se espera encarnar.

O fato de João Gilberto ter se fechado para o mundo, negando-se a dar entrevistas em sua carreira, ou simplesmente de deixar aparecer publicamente como fez nos últimos anos, tornou-se contraditoriamente uma forma dele ser frequentemente mencionado pela imprensa e atraiu a atenção da mídia, pois em um mundo onde a aparição pública é um grande negócio, a sua reclusão também se transformou em notícia, um algo inusitado e curioso de ser entendido. Um caso de ocultamento ou de auto-ocultamento que se transformou em interesse público. 

Mas Gachot, seguindo a trilha deixada por Fischer encontrou antigos amigos de João para falarem do pouco contato que tiveram com ele no passado. João Donato, Menescal e Marcos Valle relatam suas experiências, as poucas que tiveram com o "mito" da bossa-nova. Em por falar em mito, o filme de Gachot vem reforçá-lo veementemente ainda mais. Importante lembrar que "Onde está você, João Gilberto?" constrói a visão de um estrangeiro que vem descortinar os mistérios desse Rio de Janeiro sedutor e musical, apesar de melancólico. Há uma memória afetiva de um passado "que deu certo", quando o Brasil teve uma projeção mundial devido a nossa música popular. Mas será mesmo que tudo deu tanto certo assim? Tudo é muito difícil de precisar quando João Gilberto está envolvido, todavia o mito sempre é algo difícil de lidar, está situado em um patamar muitas vezes na esfera do inalcançável, está posto como algo incompreensível, pois ele precisa ser vivido e não refletido. Muitas vezes ouve-se uma análise da nossa produção musical como se ela pudesse representar a própria sociedade e assim abarcar as disparidades sociais latentes de um país apenas enamorado com transformações mais profundas.

Assentado no mito de João Gilberto, da Bossa Nova  e do desenvolvimentismo da época, o filme de Gachot opta por sustentar a leveza João gilbertiana e não por acaso sua procura acontece nas ruas de um Leblon que vive do passado, do saudosismo de beleza perdida, de uma época áurea vivida antes do golpe civil-militar de 1964 e muito antes da intervenção militar no Rio de Janeiro de 2018. Nesse ponto de vista, o filme nos soa como uma etérea estranheza, como um sonho no qual ao fim de suas quase duas horas despertamos para a realidade dura e violenta que vivemos.

Em tempos tão fugidios como o nosso, onde estamos permanentemente sendo engabelados por todos os lados, Gachot nos propõe um estranho final para o seu filme, que na verdade é um desdobramento da cena inicial. Não quero mencionar aqui a descrição da cena para evitar o spoiler. Só almejo lançar uma reflexão sobre a opção fantasiosa proposta pelo diretor, a do enganar a si mesmo como se fora uma estratégia até mesmo de sobrevivência. Evidente que há uma grande dose de humor nessa cena, o que chega até a ser interessante, mas que não encobre que o fato dela estar assentada em uma mentira vendida como verdade para o espectador. 

Claro que o filme de Gachot não precisa, nem tem a obrigação de pensar mais amplamente a nossa história, ainda mais que o filme vive imerso em uma memória e não faz parte de sua concepção pensar a cidade do Rio. Mas nós que vivemos o Rio de Janeiro de hoje saímos divididos do cinema, por um lado encantados com tanta ternura que transborda do filme, talvez até seduzidos e saudosos com o universo onírico do final dos anos 1950. Mas a desconfiança vem logo a seguir, com a certeza de que não existe mais toda essa magia e acreditar nela pode parecer até um ato inocente. Podemos até dizer que sequer é possível hoje encontrar os rastros daquela cidade que então era nomeada como maravilhosa. Por isso nos relacionamos com o filme com uma mistura de saudosismo e melancolia. Talvez o João Gilberto de hoje simbolize mais do nunca a loucura social que enfrentamos agora: uma imensa vontade de se esconder de tudo que nos cerca.

Visto no Estação Net Rio 4, em 25 de agosto de 2018.
Cotação: 2 e meio/5               

                                    


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