
Texto de Marco Fialho, escrito para o catálogo da mostra realizada pelo Sesc denominada "O Lobo à Espreita - uma homenagem ao centenário de Ingmar Bergman", em 2017.
O SÉTIMO SELO (1956)
Somos inocentes, mas responsáveis. Inocentes perante aquele que já não existe, responsáveis perante nós próprios e os nossos semelhantes.
August Strindberg
O Sétimo Selo é sem dúvida um filme icônico, extrapola o país de origem para fulgurar como um cânone do cinema mundial, reconhecido merecidamente como um dos mais importantes da história. Mas é icônico em outro aspecto ainda, algumas de suas imagens estão fixadas no imaginário do cinema e são muito divulgadas, como a do cavaleiro jogando xadrez com a morte; da morte com a capa aberta lateralmente; e a do plano geral da montanha onde os personagens aparecem apenas em silhuetas dançando com a morte. Tal como a imagem de Carlitos nas engrenagens da fábrica em Tempos Modernos, a da dança com as botas no filme Em Busca do Ouro, apenas para citar duas, essas imagens realizadas por Bergman também permeiam o imaginário cinematográfico do homem contemporâneo, mesmo depois de mais de sessenta anos da estreia.
Mas claro que o filme está também para além das imagens icônicas que produziu. Seu lastro filosófico permeia toda a experiência do espectador. Bergman tinha enorme facilidade de incorporar discussões filosóficas profundas nos filmes que roterizou e dirigiu. A ideia mais brilhante do filme é a da personificação da morte (interpretação marcante de Bengt Ekerot), a de fazê-la adentrar na trama e agiganta-la como um personagem de carne e osso. Em seu livro de 1990, Imagens, Bergman confessa que o filme nasce de uma peça que havia escrito para poder avaliar os alunos de teatro e que por isso a criou com muitos personagens. O nome da peça era O Retábulo da Peste. Não havia então grandes pretensões quando a criou, só foi aceita como projeto de um filme pelo produtor devido ao sucesso em Cannes do filme Sorrisos de uma Noite de Amor. E na arte isso é muito comum, um determinado sucesso respaldar e facilitar um futuro trabalho de um artista.
Apesar do filme ser uma parábola sobre a relação do homem com a morte, O Sétimo Selo não é um filme pesado e de difícil entendimento, tem inclusive cenas cômicas, e não chega a ser um filme contemplativo e hermético, como outros do diretor. Logo na primeira cena o tema já é exposto, assim como o tom cômico do filme. O personagem Morte logo aparece para o cavaleiro, que de súbito, o desafia a uma partida de xadrez. É feito um sorteio e as peças pretas ficam com a Morte: "bem apropriado", afirma a Morte, ou se quisermos, o próprio Bergman. É uma cena leve, onde Bergman faz uma apresentação explícita, simples e brilhante do tema ao espectador. Daí inicia-se um road movie como o próprio Bergman gostava de se referir ao filme, um road movie medieval, com cavalos e carroças, com cavaleiros, palhaços, atrizes, artistas plásticos, padres e diversos personagens que bem expressam esse cativante período histórico. Mas não podemos nos enganar que o período medieval dialoga perfeitamente, e assombrosamente, com os anos de 1950. No pós-guerra, a bomba atômica e possibilidade real de extermínio humano era um correspondente poderoso a do desastre que representou a peste medieval, e essa correlação não é difícil de reconhecer e o próprio Bergman chegou a mencioná-la.
A morte perambula e permeia todo o filme; a morte real da peste, mas também a morte como possibilidade latente e inesperada. Cercada pela morte por todos os lados fica o homem em uma situação existencial delicada. Como viver com ela espreitando o mundo, ela se torna tão concreta como uma árvore em uma floresta e o sol no verão. No teatro ela também aparece com abundância, as máscaras de caveira se impõem como tema, inclusive na arte.
Curioso como em O Sétimo Selo Bergman relaciona tragicamente morte e arte. Tal como a morte, a arte também é mal vista por todos, pois ela nem sempre agrada o gosto comum. Assim Bergman discute com o público como é difícil se defrontar com o discurso e a forma artística, esse eterno duelo entre público e artista, o primeiro esperando do segundo a distração, o entretenimento; já o segundo, e Bergman é um bom exemplo disso, com tendências a incomodar o primeiro.
Mas em O Sétimo Selo a arte simboliza a esperança, não à toa é o artista que afirma ver a imagem viva e cheia de luz da Virgem Maria e faz uma descrição mítica dela. Há por parte de Bergman um reconhecimento de como a arte precisa mentir para atingir a verdade, um universo de fantasia que mantém o homem e a humanidade vivos. Inclusive Bergman usa e abusa da iconografia medieval. A cultura e a moral católicas são exploradas largamente pelo diretor por meio da crise existencial do cavaleiro Antonius Block, interpretado magneticamente por Max Von Sydow, justamente o personagem que questiona a fé no ser supremo, após ver tanta morte nos campos de batalha e também quando retorna à própria aldeia devastada pela peste negra.
Mas inicialmente o filme se desenvolve em duas frentes, que lá na metade do filme se encontram. Uma com o cavaleiro e seu escudeiro fiel (uma espécie de versão sisuda de Don Quixote e Sancho Pancho ) voltando das Cruzadas; outra com a trupe teatral. Ambas frentes se intercalam em uma montagem paralela, os personagens todos tendo que lidar com a morte, conviver com ela, tentando estabelecer estratégias de sobrevivência e de fuga desse fim que se avizinha de forma tão pungente. Enquanto os artistas cantam e dançam para o público a morte interrompe o espetáculo para exibir uma procissão com as vítimas da peste. A realidade de uma morte abundante e banal é pungente tanto para as criaturas medievais quanto para as que vivem sob a ameaça da hecatombe atômica nos anos 1950. Mas a relação da arte é com a vida e os percalços advindos dela. Enquanto estamos vivos tudo é possível, tudo está em aberto, mas a morte chega traz de imediato algo de definitivo e imutável.
Quando os artistas encontram com os cavaleiros se estabelece um tom nostálgico, a guerra entra como um elemento de afastamento dos homens de suas vidas cotidianas pacíficas fora do ambiente hostil e destrutivo da guerra. Em "O sétimo selo" há um certo culto à trivialidade da vida medieval, o leite e os morangos são os bálsamos de um mundo possível de confraternização e solidariedade. Durante uma fração de tempo a morte é esquecida e a vida floresce em um lampejo de harmonia entre o homem e a natureza, e também dos homens entre em si. Mas imediatamente o personagem Morte reaparece para continuar a afrontar com o jogo mórbido e inexorável de xadrez, e para lembrar ao cavaleiro o destino mortal que se avizinha.
Mas para que pintar a morte? Pergunta o escudeiro a um artista plástico. "Para que todos saibam que morrerão", diz o artista. Não adianta, Bergman coloca a morte sempre no caminho dos personagens e lembra sempre que a arte precisa encarar os desafios do tempo presente, trazer à baila os temas que mais abalam o homem contemporâneo. O artista pinta a morte, mas também sublinha a culpa dos homens que se julgam amaldiçoados porque pecaram. A educação religiosa e rígida recebida na infância por Bergman aflora sempre em sua obra, ele precisa enfrentar esse elemento que o incomoda tanto, que lhe impingiu e introjetou a autocensura. O ambiente religioso, para Bergman não alivia, apenas acentua a angústia e a presença da morte.
O encontro com a morte é inevitável, torna tudo muito angustiante, e essa certeza tortura a alma de todos os seres humanos. Mas Bergman mesmo sabendo também ser um perdedor mostra que o artista é o único que no cômputo geral ainda pode tirar um sarro com esse personagem que todos querem de alguma forma fugir, e essa é a grandeza dessa obra icônica. E por mais que a morte seja o fim dos indivíduos, a vida resiste a cada nova criança que vem ao mundo. E no filme, o nascimento de Mikael simboliza esse porvir. Por isso, o cômico e o trágico caminham sempre lado a lado em O Sétimo Selo, Bergman põe os mortos, e a própria morte, literalmente, para dançar.
Cotação: 4 e meio/5
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