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FANNY E ALEXANDER (1982) Direção de Ingmar Bergman


Texto escrito por Marco Fialho para o catálogo da Mostra "O Lobo à Espreita: uma homenagem ao centenário de Ingmar Bergman", em 2017.


FANNY E ALEXANDER

Família, tu és a morada de todos os vícios da sociedade; tu és a casa de repouso das mulheres que amam as suas asas, a prisão do pai de família e o inferno das crianças.
August Strindberg

Fanny e Alexander é um filme de Bergman onde ele aborda mais a superfície do que os recônditos humanos, já que a interioridade dos personagens sempre foi tônica dominante da maioria de sua obra cinematográfica. Mas isso não é um aspecto que diminui o filme, antes apenas o situa em outra abordagem. O que fica de Fanny e Alexander são as relações familiares, enquanto que o aprofundamento dos personagens fica em segundo plano. Deve se registrar que o grande número de personagens também torna-se  um empecilho à profundidade.   

Mesmo partindo dessa premissa, que Fanny e Alexander não se conforma como uma das obras mais impactantes de Bergman, o filme tem seus momentos impressionantes, mesmo que no todo ele esteja longe de outras obras-primas do diretor. Mas deve-se salientar que Fanny e Alexander é a obra plasticamente mais bem acabada de Bergman, a produção mais requintada visualmente, não à toa ganhou quatro Oscar, um de Filme Estrangeiro e mais três técnicos (direção de arte, figurino e fotografia).  
Outro aspecto interessante da obra é a introdução do teatro, da lanterna mágica, do cinema e das marionetes na trama, todos muito caros a Bergman e com presença marcante em sua longa e exitosa trajetória artística. O teatro físico está presente, mas não só, devemos lembrar que Bergman encerra o filme com uma citação de um dos seus dramaturgos preferidos, o também sueco August Strindberg. Fanny e Alexander, na época, foi anunciada como sua despedida do cinema, o que criou no set um envolvimento extraordinário, todos queriam que a derradeira obra fosse especial. E não deixou de ser, foi seu maior sucesso de público, e artisticamente funciona como uma síntese de toda a sua obra, por incorporar elementos de humor, de conflitos familiares e religiosos, questionamentos filosóficos sobre a morte e a vida, mulheres complexas, enfim, seus principais temas. Se isso acabou por enfraquecer seu resultado final, aproximou mais o público de sua obra, sempre considerada hermética e de difícil compreensão.     

A bela locação escolhida para a casa da família de artistas colabora e realça os figurinos (de cores sóbrias) e a direção de arte (puxada para o vermelho), e permite que o célebre fotógrafo Sven Nykvist construa imagens quentes para esse ambiente. Já na casa austera do bispo, nota-se a ausência de cores fortes e acentua-se os tons mais neutros. Um dos cenários mais incríveis e saltam aos olhos quando aparecem são os da entulhada e labiríntica casa do personagem de Erland Josephson, em especial as lindas marionetes que Bergman conseguiu no Museu Teatro do Palácio de Drottningholm.  Talvez esse esmero nos detalhes cênicos, não tão comuns nas produções bergmanianas, fortaleçam os aspectos de superfície, já que a ambiência acaba por abafar a interiorização dramática dos personagens. Devido a esse enfoque no visual, acreditamos que Fanny e Alexander seja um filme para ser fundamentalmente apreciado sensorialmente, por se impor enquanto uma obra para ser deleitada esteticamente.             
Existem claramente dois blocos no filme. O primeiro quando conhecemos a família festeira de artistas, cheia de personagens pitorescos e engraçados, que fazem Fanny e Alexander conviverem em um ambiente familiar onde há sim uma rigidez em relação à infância, mas ela se torna constantemente mais fluida. Entretanto, com a morte do pai se instaura um divisor de águas no enredo do filme. O segundo bloco inicia com o segundo casamento de sua bela mãe com um bispo da cidade, onde conhecerão uma outra rigidez vinda de uma moral religiosa mais austera e dogmática. O filme tem pouquíssimas cenas onde o cenário não é a casa, e isso diz muito sobre o todo, essa era uma intenção deliberada de Bergman, trabalhar a organização familiar.

É impossível não relacionar o filme com alguns relatos expostos por Bergman em sua autobiografia Lanterna Mágica. Os duros castigos impostos às crianças é um exemplo, mas a presença da própria lanterna mágica também. Como não relacionar Alexander com Bergman que também em sua infância ficou igualmente fascinado pelo mesmo objeto. Mas Fanny e Alexander não é um filme autobiográfico, apenas incorpora elementos da infância de Bergman sob um outro contexto familiar. 
Curioso o ardil de Bergman ao situar a história na época de sua infância, os anos 1920. Há declarações dele de que pensou muito na casa de sua avó para construir o enredo do filme. Não casualmente, a avó é importantíssima para a história, segundo o próprio Bergman "se eu tenho um porta-voz nesse filme é a vó, papel de Gun Wallgren. Ela é a peça central, elemento de união. O filme é estruturado de tal maneira que ela retorna em certas ocasiões e ela carrega o final do filme: ela diz sobre o que é tudo. Ela é o ponto fixo. Ela é experiente. Ela sabe o que está acontecendo."    
No documentário Diário de uma filmagem, um making-of do filme, ele assume que em algumas cenas tentou recriar momentos exatos de sua infância. É incrível vê como Bergman se diverte no momento da filmagem, no auge de sua experiência e fama, seu comportamento quase sempre é de um menino que acabara de ganhar um presente tão desejado dos pais. Essa leveza que se sustenta na primeira parte do filme é bem raro na carreira de Bergman, normalmente recheada de dramas carregados de carga emocional e de reflexões filosóficas sobre a morte e existência. Mas na segunda parte do filme esse tom muda e se aproxima muito mais do universo tradicionalmente explorado em suas obras, e a presença do bispo e sua família afeita a uma educação rigorosa, com requintes mesmo de crueldade, ratificam a opção de Bergman em registrar os percalços de certas ordens familiares quando essas são calcadas na repressão.   

Outro fato que distingue uma maior frouxidão moral da família de artistas é a conduta de certos personagens, como um dos filhos que tem um caso praticamente declarado com uma das empregadas da casa, chegando inclusive a ter um filho com ela, que é incorporado à cena familiar sem grandes transtornos.
Fanny é uma personagem muito enigmática na trama, ela quase não tem fala durante a mais de três horas de projeção. Funciona mais como uma companheira fiel, um contraponto a Alexander. Ela não apoia as torturas e punições abusivas impostas pelo padrasto ao irmão. Em relação a essa questão, o crítico Carlos Armando situa não só Fanny, mas também todas as mulheres e homens do filme da seguinte forma: “mais uma vez, e agora no nível tenro da infância, Bergman exalta o caráter feminino e sua força, enquanto o homem se revela mais vulnerável. De Fanny à matriarca Helena, as mulheres no filme são todas colocadas num plano superior, ao passo que os homens, de Alexander ao velho Isaak Jacobi, demonstram de novo fraqueza e insegurança”.

Mas indiscutivelmente quase todos os temas bergmanianos estão presentes em Fanny e Alexander. A morte, o abandono, a crise existencial, as relações familiares, a opressão religiosa, o cinema, o teatro, o amor, o sexo, entre outros elencáveis. Como em um típico filme-testamento, Bergman compila tudo em um só filme. Dá a impressão também que fala de tudo e que se diverte muito fazendo o filme, mas falta um maior aprofundamento dos temas levantados. Mas quem quiser aprofundá-los, recomendamos que assista aos outros filmes de Bergman.

Cotação: 3 e meio/5

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