Texto escrito por Marco Fialho para o catálogo da Mostra "O Lobo à Espreita: uma homenagem ao centenário de Ingmar Bergman", em 2017.
FANNY E ALEXANDER
Família, tu és a
morada de todos os vícios da sociedade; tu és a casa de repouso das mulheres
que amam as suas asas, a prisão do pai de família e o inferno das crianças.
August Strindberg
Fanny e Alexander é um filme de Bergman onde ele aborda mais a superfície do que os
recônditos humanos, já que a interioridade dos personagens sempre foi tônica
dominante da maioria de sua obra cinematográfica. Mas isso não é um aspecto que
diminui o filme, antes apenas o situa em outra abordagem. O que fica de Fanny
e Alexander são as relações familiares, enquanto que o aprofundamento dos
personagens fica em segundo plano. Deve se registrar que o grande número de
personagens também torna-se um empecilho à profundidade.
Mesmo partindo dessa premissa, que Fanny e Alexander não se
conforma como uma das obras mais impactantes de Bergman, o filme tem seus
momentos impressionantes, mesmo que no todo ele esteja longe de outras
obras-primas do diretor. Mas deve-se salientar que Fanny e Alexander é a
obra plasticamente mais bem acabada de Bergman, a produção mais requintada
visualmente, não à toa ganhou quatro Oscar, um de Filme Estrangeiro e mais três
técnicos (direção de arte, figurino e fotografia).
Outro aspecto interessante da obra é a introdução do teatro, da lanterna
mágica, do cinema e das marionetes na trama, todos muito caros a Bergman e com
presença marcante em sua longa e exitosa trajetória artística. O teatro físico
está presente, mas não só, devemos lembrar que Bergman encerra o filme com uma
citação de um dos seus dramaturgos preferidos, o também sueco August
Strindberg. Fanny e Alexander, na época, foi anunciada como sua
despedida do cinema, o que criou no set um envolvimento extraordinário, todos
queriam que a derradeira obra fosse especial. E não deixou de ser, foi seu
maior sucesso de público, e artisticamente funciona como uma síntese de toda a
sua obra, por incorporar elementos de humor, de conflitos familiares e
religiosos, questionamentos filosóficos sobre a morte e a vida, mulheres
complexas, enfim, seus principais temas. Se isso acabou por enfraquecer seu
resultado final, aproximou mais o público de sua obra, sempre considerada
hermética e de difícil compreensão.
Existem claramente dois blocos no filme. O primeiro quando conhecemos a
família festeira de artistas, cheia de personagens pitorescos e engraçados, que
fazem Fanny e Alexander conviverem em um ambiente familiar onde há sim uma
rigidez em relação à infância, mas ela se torna constantemente mais fluida.
Entretanto, com a morte do pai se instaura um divisor de águas no enredo do
filme. O segundo bloco inicia com o segundo casamento de sua bela mãe com um
bispo da cidade, onde conhecerão uma outra rigidez vinda de uma moral religiosa
mais austera e dogmática. O filme tem pouquíssimas cenas onde o cenário não é a
casa, e isso diz muito sobre o todo, essa era uma intenção deliberada de
Bergman, trabalhar a organização familiar.
É impossível não relacionar o filme com alguns relatos expostos por
Bergman em sua autobiografia Lanterna Mágica. Os duros castigos impostos
às crianças é um exemplo, mas a presença da própria lanterna mágica também.
Como não relacionar Alexander com Bergman que também em sua infância ficou
igualmente fascinado pelo mesmo objeto. Mas Fanny e Alexander não é um filme
autobiográfico, apenas incorpora elementos da infância de Bergman sob um outro
contexto familiar.
Curioso o ardil de Bergman ao situar a história na época de
sua infância, os anos 1920. Há declarações dele de que pensou muito na casa de
sua avó para construir o enredo do filme. Não casualmente, a avó é
importantíssima para a história, segundo o próprio Bergman "se eu tenho um
porta-voz nesse filme é a vó, papel de Gun Wallgren. Ela é a peça central,
elemento de união. O filme é estruturado de tal maneira que ela retorna em
certas ocasiões e ela carrega o final do filme: ela diz sobre o que é tudo. Ela
é o ponto fixo. Ela é experiente. Ela sabe o que está acontecendo."
No documentário Diário de uma filmagem, um making-of do
filme, ele assume que em algumas cenas tentou recriar momentos exatos de sua
infância. É incrível vê como Bergman se diverte no momento da filmagem, no auge
de sua experiência e fama, seu comportamento quase sempre é de um menino que
acabara de ganhar um presente tão desejado dos pais. Essa leveza que se
sustenta na primeira parte do filme é bem raro na carreira de Bergman,
normalmente recheada de dramas carregados de carga emocional e de reflexões
filosóficas sobre a morte e existência. Mas na segunda parte do filme esse tom
muda e se aproxima muito mais do universo tradicionalmente explorado em suas
obras, e a presença do bispo e sua família afeita a uma educação rigorosa, com
requintes mesmo de crueldade, ratificam a opção de Bergman em registrar os
percalços de certas ordens familiares quando essas são calcadas na repressão.
Outro fato que distingue uma maior frouxidão moral da família de
artistas é a conduta de certos personagens, como um dos filhos que tem um caso
praticamente declarado com uma das empregadas da casa, chegando inclusive a ter
um filho com ela, que é incorporado à cena familiar sem grandes transtornos.
Fanny é uma personagem muito enigmática na trama, ela quase não tem fala
durante a mais de três horas de projeção. Funciona mais como uma companheira
fiel, um contraponto a Alexander. Ela não apoia as torturas e punições abusivas
impostas pelo padrasto ao irmão. Em relação a essa questão, o crítico Carlos
Armando situa não só Fanny, mas também todas as mulheres e homens do filme da
seguinte forma: “mais uma vez, e agora no nível tenro da infância, Bergman
exalta o caráter feminino e sua força, enquanto o homem se revela mais
vulnerável. De Fanny à matriarca Helena, as mulheres no filme são todas
colocadas num plano superior, ao passo que os homens, de Alexander ao velho
Isaak Jacobi, demonstram de novo fraqueza e insegurança”.
Mas
indiscutivelmente quase todos os temas bergmanianos estão presentes em Fanny
e Alexander. A morte, o abandono, a crise existencial, as relações
familiares, a opressão religiosa, o cinema, o teatro, o amor, o sexo, entre
outros elencáveis. Como em um típico filme-testamento, Bergman compila tudo em
um só filme. Dá a impressão também que fala de tudo e que se diverte muito
fazendo o filme, mas falta um maior aprofundamento dos temas levantados.
Mas quem quiser aprofundá-los, recomendamos que assista aos outros filmes de
Bergman.
Cotação: 3 e meio/5
Cotação: 3 e meio/5
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