
Texto de Marco Fialho escrito para o catálogo "O Lobo à Espreita: uma homenagem ao centenário de Ingmar Bergman", em 2017.
A HORA DO LOBO (1968)
No fundo, é isso,
a solidão: envolvermo-nos no casulo da nossa alma, fazermo-nos crisálida e
aguardarmos a metamorfose, porque ela acaba sempre por chegar.
August Strindberg
A Hora do Lobo é um dos filmes
mais enigmáticos da carreira de Bergman, uma tentativa de superação artística,
estética e estilística do diretor dentro de sua filmografia, mas é igualmente
uma experiência desafiadora para o espectador, por ser um filme onde sonho, o
delírio e o desejo se fundem e confundem drasticamente em uma viagem sensorial
poucas vezes vista no cinema. Trata-se de um Bergman vigoroso, ousado,
poderosamente imagético, desafiador esteticamente, descontínuo, em plena forma
artística e de encher os olhos.
O filme começa com uma tela preta e uns sons de um
set de filmagem, barulhos de martelos, de madeira sendo cortada e vozes de
trabalhadores são ouvidas. Esse início já nos deixa bem intrigados. Será que já
é o som do filme e sendo assim o filme se passa em um set de filmagem ou é só
uma brincadeira de Bergman nos mostrando sons que denunciam que veremos um
filme? Curioso Bergman fazer isso logo nessa sua obra, a mais enigmaticamente
cinema, a que mergulha descaradamente na linguagem dos sonhos e na loucura do
inconsciente. Filme que revela o inconsciente do seu personagem, mas também do
próprio diretor Ingmar Bergman. O resultado é que A Hora do Lobo se
desenha como sua obra mais formalmente inacabada (o que não é em si um
problema), que exige do espectador uma participação em sua montagem e
compreensão. Mas o registro de que sim estamos vendo um filme continua na
primeira imagem em que a personagem Alma interpretada por Liv Ullmann, olhando
para a câmera diz ao diretor que nada mais tinha a dizer e que já lhe havia
entregado o diário de seu marido, o artista plástico Johan Berg, que então
desapareceu misteriosamente. O tom de Alma é o confessional, quase o de uma
recusa. A instabilidade dela está expressa na sua voz, marcada por uma profunda
tristeza e decepção, mas também está no movimento de suas mãos, no mexer impaciente
com a aliança de casada enquanto fala, como se não soubesse se a tira dos dedos
ou se ainda nutre esperanças da volta de seu marido.
Mas A Hora do Lobo termina também com o
depoimento de Alma, que fecha o ciclo proposto por Bergman. Esse fato nos incita
questionamentos, pois nos créditos iniciais somos informados que o diário é o
ponto de partida para a história, mas com Alma fazendo às vezes de narradora do
filme (início e fechamento), deixa no ar uma dúvida sobre qual a perspectiva
que realmente assistimos em todo o filme. Talvez o mais sensato fosse optar por
um hibridismo, pois há fatos que a própria Alma conheceu por causa do diário do
marido.
Um dos pontos altos do filme é a sua construção
imagética. A fotografia expressionista de Sven Nykvist privilegia o uso das
sombras e dos contrastes, o que é compreensível pela predominância do tom
soturno da história. Há também as pitadas surrealistas, como o da velha que
retira o olho e o coloca em um copo em plena mesa de um jantar formal com
vários convidados. Pode-se ainda descrever um clima felliniano nesse mesmo
jantar, em especial o movimento vertiginoso de câmera visivelmente inspirado em
8 e 1/2. A construção dos personagens chamados de “canibais” (inclusive
esse era o nome que Bergman primeiro pensou para o filme) também são muito
fellinianos, filmados em closes, todos com semblantes, gestos e falas
artificiais, forçadas, como se fossem decoradas. Mas esses personagens nada
mais são que os fantasmas de Johann Berg, que em uma tentativa de ir para uma
ilha deserta para fugir dessas sanguessugas, a contragosto, se depara com todos
lá. Bergman nos mostra que a questão dos nossos fantasmas é muito mais
profunda, pois movimenta nosso inconsciente, que nos faz carregá-los conosco,
não importando muito aonde vamos. Não se trata aqui de fugir geograficamente
dos nossos fantasmas quando eles ainda habitam nosso inconsciente. Esse é o
caso de Berg, foge para uma ilha com a esposa, mas leva junto seus fantasmas,
seus canibais que tanto queria defenestrar.
Como em outros
filmes de Bergman A Hora do Lobo explora muito bem a questão dos
fantasmas, um elemento central no enredo do filme, e eles nos são mostrados de
forma viva, tal como se afronta no inconsciente de Berg. Apesar dos fantasmas
serem frequentes em Bergman, eles são trabalhados de formas diferentes nas suas
obras, mas o mecanismo de colocá-los no mesmo patamar da realidade é crucial na
obra bergmaniana. Tanto que não há diferenciação na imagem, já que em ambos os
casos, eles são profundamente verdadeiros para os personagens, o elo entre
passado e presente dos personagens. Nota-se que há um amadurecimento na obra de
Bergman no uso desses fantasmas como personagens. Por exemplo, em Morangos
Silvestres eles são anunciados, inclusive no âmbito sonoro da cena, já em A
Hora do Lobo e Face a Face não, eles estão situados temporalmente no
mesmo plano da realidade, como temporalidades que coabitam no âmbito do
sujeito, que unifica essas realidades e cria as hierarquizações.
Claro que a entrega de Max Von Sydow e Liv Ullmann
também são fundamentais para a construção do ambiente fantasmagórico do filme.
A forma na qual eles mergulham nas dores de seus personagens impressiona a nós
espectadores. Os fantasmas são, a princípio, todos de Berg, mas aos poucos vão
sendo também de Alma. Alma faz um discurso na hora do lobo de como cada vez
mais eles ficam parecidos, fato inclusive recorrente de acontecer entre os
casais. Na manhã seguinte ela vê misteriosamente o fantasma de uma senhora, que
lhe pede para olhar o diário que Berg esconde no baú, e ainda reclama dos
desenhos que ele fazia dos “canibais”. A partir desse momento os fantasmas não
param de lhe assombrar, o que faz parecer que os dois entram nessa viagem
alucinatória. Mas indubitavelmente os fantasmas vêm de Berg, e ele os vê
claramente. Eles se personificam em poderosos em geral, com seus vinhos caros,
suas refeições abastadas, belas amantes e interesseiras, que transitam e povoam
comumente o universo das artes.
Mas A Hora do Lobo nos vislumbra
como uma poderosa metáfora do artista e de sua relação na sociedade, em
especial a do consumo. Curadores, burocratas, merchands e outros
patrocinadores que visam lucrar com o trabalho e criação artística alheia. Para
Bergman esses são os fantasmas que atormentam os artistas. E é na chamada hora
do lobo, a hora da madrugada quando mais nascem pessoas, mas que também mais se
morre e que o tormento do artista aflora, onde os pesadelos são mais tenebrosos
e os fantasmas do inconsciente vêm à tona. E o filme trabalha nesse meandro dos
pesadelos, dos tormentos, das angústias dos personagens. Mas do que qualquer
outro filme de Bergman A Hora do Lobo nos faz imergir em uma atmosfera
alucinatória, onde sonho e realidade efetivamente se misturam, e isso faz dele
um filme de horror, pois não suportamos viver nas sombras, sobretudo nas
sombras de nós mesmos.
Tem um momento no filme em que o diabo ataca Berg
nos rochedos perto do mar. Berg luta com esse diabo, personificado em um
menino, uma criança aparentemente inofensiva. Esse ataque se dá logo após um
relato que ele faz na hora do lobo sobre um castigo recebido durante a sua
infância, onde ficava preso dentro de um armário. Esse ataque deve ser
relacionado com esse castigo, com a necessidade de matar essa infância marcada
por castigos corporais e encarceramentos. A sequência do diabo então é
simbólica, baseada em um recalque da sua educação quando criança. E a morte é
brutal, Berg joga violentamente a criança contra o rochedo e depois a arremessa
ao mar. Os tormentos são mais profundos do que pensamos e Bergman primava por
trabalhar essas perspectivas.
Mas a derrota de Berg é eminente. Há uma cena em
que uma arma de fogo surge e essa hora é decisiva para o casal. Segundo Bergman
nesse momento Johan Berg “opta pelos sonhos dos demônios, em vez da realidade
que Alma representa”. Mas Bergman parece jogar também com os nossos demônios.
Não é tão incomum assim o assombro de amores passados nas vidas das pessoas,
assim como a dificuldade de se relacionar socialmente com pessoas com atitudes interesseiras.
Mas o ápice da crise emocional de Johan Berg só poderia aflorar no castelo dos
demônios, localizado exatamente em seu inconsciente.
Na verdade Berg visita duas vezes o castelo dos
“canibais”, ou dos demônios: a primeira é primordialmente sufocante e ele fica
deslocado, visivelmente incomodado, mas está em companhia de Alma; já na
segunda visita o seu comportamento revela-se mais caótico, pois a sua antiga
amante, Veronika Vogler, está presente e isso o deixa mais agitado e
perturbado. O castelo dessa vez mostra-se labiríntico e mais tenebroso, com
corvos, pombos, vampiros e ambientação acentuadamente expressionista, repleta
de sombras, seres humanos assustadores e um pé-direito alto que apequena nosso
Berg. O clima onírico se faz presente o tempo todo e a câmera se movimenta
muito, mas sempre mantendo a proximidade dos rostos, em especial as fisionomias
do atormentado Berg. Os fantasmas se divertem e tiram sarro de seu semblante
assombrado.
Tudo parece muito irreal e deformado, um verdadeiro castelo de
horrores. Quando Berg enfim vê Veronika Vogler ela está coberta como estivesse
em um necrotério. Ele alisa saudosista seu corpo morto, mas de repente ela
começa a rir, assim como todos os outros fantasmas e o rosto de Berg se mostra
transfigurado e deformado. Ou assim estaria seu estado mental? O fundo do poço
foi atingido. Só resta a Berg sua sentença final dita por ele mesmo, “o limite
foi enfim transgredido. O espelho foi estilhaçado. Mas o que os estilhaços
refletem? Você pode me dizer?” Essas palavras são proferidas com o personagem
de Berg olhando para a câmera, isto é, para nós espectadores. Mas dessa imagem
devemos atentar para a próxima, a do menino-diabo afogado no mar. Essa imagem
repetida nesse momento merece uma reflexão, pois deixa suspenso, e incerto, o
seu futuro. Seria simbolicamente uma vitória de Berg sobre o seu passado, a
superação de um recalque? Parece que Bergman que nos dizer que somente levando
nossos recalques ao extremo podemos superá-los. Talvez a própria ilha possa ser
vista como um elemento concreto desse aprisionamento. Sair desse ambiente seria
então voltar para o mundo com novas ressignificações. Bergman mais uma vez nos
lança em um abismo e nos desafia a decifrá-lo, e a tentar sair dele. As
angústias dos personagens tornam-se também nossas. Parece que para Bergman, o
perigo de viver é iminente, e sempre irremediável.
Cotação: 5/5
Cotação: 5/5
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