Pular para o conteúdo principal

VINTE ANOS - Direção de Alice de Andrade


Com açúcar e com afeto na ilha de Fidel

Crítica de Marco Fialho

Um dos temas mais polêmicos em discussões políticas é o que envolve Cuba. As posições extremadas costumam pautar as polêmicas. Seria Cuba uma ditadura ou um justo regime socialista? O filme "Vinte Anos", de Alice de Andrade é um caso raro nessa celeuma a céu aberto em que se transformou o debate sobre essa pequena ilha caribenha, famosa pelo açúcar, o tabaco e seus principais derivados, o rum e o charuto. Essa divisão político-ideológica vem desde os tempos em que os revolucionários bravamente comandados por Fidel, Che e Cienfuegos, em 1959, desceram a Sierra Maestra para derrubar a ditadura de Fungêncio Batista, um ditador que permitia que Cuba fosse o paraíso, ou melhor, o quintal dos grandes empresários norte-americanos.

Alice de Andrade, filha de Joaquim Pedro de Andrade e formada pela famosa Escola de Cinema e TV de San Antonio de los Baños, realizou em 1992 o curta-metragem "Lua de Mel", sobre o casamento em Cuba, onde abordava as expectativas de três casais acerca de seus futuros. Vale ressaltar que o curta foi filmado no período conhecido por "Período Especial em Tempos de Paz", o mais crítico da vida cubana pós-revolucionária, em que perdeu o expressivo apoio da ex-URSS e as dificuldades econômicas eram terríveis, lembrando que desde 1960 o governo dos EUA implantaram um rígido bloqueio à ilha, condenado diversas vezes pelas Assembleias da ONU, pois os bloqueios econômicos são permitidos apenas em períodos de guerra. O filme registra diversas visitas da diretora a ilha, sempre preocupada em voltar às famílias filmadas no passado no curta, e assim vai inventariando tanto as vidas delas quanto da própria vida em Cuba.

Mas a situação do bloqueio econômico só começou a mudar em 2014, quando o então Presidente Barack Obama fez pronunciamentos sobre a ineficácia do bloqueio até mesmo para os norte-americanos. Todo esse isolamento fez de Cuba um país mundialmente diferente, e mais, tornou seu povo especial, abnegado, um lutador diário pela sua sobrevivência e de seus. Essa beleza está fortemente registrada em "Vinte Anos". O grande mérito desse filme está no carinho permanente que demonstra por esse povo, de fazê-lo por meio de seus personagens simples o motor de sua obra. Não há preocupações de mostrar intervenções governamentais ou opiniões sobre o regime político cubano, seu foco é outro. O filme é centrado na vida de cidadãos comuns, e realiza, mesmo não sendo sua preocupação direta, um esboço de um tratado sobre o cotidiano das pessoas simples, que viveram anos e anos isolados criando suas estratégias próprias de sobrevivência. Não à toa, a diretora está preparando uma série de TV a partir de suas experiências com o povo cubano.   

A montagem do filme provoca muitas idas e vindas no tempo. Essa miscelânea temporal muitas das vezes torna a construção fílmica deveras caótica, com mudanças sistemáticas dos períodos abordados. Mas ao final, essa desorganização temporal termina também por expressar algo. A turbulência cotidiana da vida dos personagens soma-se a da narrativa e isso sim realiza, por mais inconsciente que seja para Alice de Andrade, uma ordem ao filme, pois o tempo também é um dos personagens de "Vinte anos". Portanto, a forma organizativa dessa obra segue critérios mais afetivos do que acadêmicos, o que dá uma impressão geral de amadorismo à obra. Amadorismo entendido aqui em sua mais profunda e bela acepção.

Seria até oportuno melhor desenvolver essa minha assertiva sobre o amadorismo. Isso fica explícito em alguns momentos do filme, todavia quero destacar apenas um: o momento do filme em que a diretora retorna a Havana e abraça calorosamente uma de suas personagens. É o registro espontâneo de um reencontro e a personagem faz questão de falar com um a um da equipe, praticamente ignorando a presença da filmagem. O que fica claro então é que não se trata de uma reencenação, de algo pré-programado por todos que participam da cena, fruto de um pré-acordo. Então, o que vemos na tela é a captação de um momento, no qual nem a diretora sabia o que aconteceria. Mas essa cena ratifica também uma impressão que será confirmada no decorrer das próximas sequências, de que esse gesto de afeto vai além, ele simboliza não só a relação de Alice com o seu objeto de filmagem, mas também anuncia seu método de abordagem.

Essa é uma obra onde a sua autora abraça seu tema, o envolve sem medo de ser julgada por isso. Um filme onde a autora é cúmplice de seus personagens, não os julga em nenhum instante, os mostra então cheios de vida. É isso, a vida transborda desse filme, e sinceramente, como sinto falta às vezes dessa genuína energia em muitos documentários que almejam igualmente tocar a vida de pessoas simples. Destaco ainda a forma honesta na qual a música adentra na história. Ou são os próprios personagens que a escutam, tocam e dançam, pois cubanos são bem brasileiros nessa hora, ou a própria diretora incorpora trilhas musicais que para ela emocionalmente casam com a cena.                         

O mais interessante é observar que Alice de Andrade demonstra consciência de que está filmando os estertores do embargo, e que muito em breve Cuba se aproximará em sua aparência com qualquer outro país do Século 21, com seu comércio intenso e desenvolvido, com carros novos circulando em suas ruas, e que Havana velha não será mais a mesma. No filme, há permanentemente uma sensação, de que tudo que distingue aquela forma de vida em Cuba será suprimida em questão de tempo, e que a irreversível modernização vindoura fará desse filme uma lembrança poderosa de um passado difícil, mas que será saudoso por ter sido tão peculiar. Se a história é um carro cheio de gente contente que arrasta indiferente todo aquele que a negue, conforme tão bem já disseram Chico Buarque e Pablo Milanés na sua linda canção, o povo cubano parece está sentado bem na frente desse veículo.

Visto no Cine Arte UFF, no dia 26 de julho de 2018.   

Cotação: 3/5                                     


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...