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HANNAH - Direção de Andrea Pallaoro




Uma baleia encalhada na areia

There's no sign of life
It's just the power to charm
I'm lying in the rain
But I never wave bye-bye
                                            David Bowie - Modern love

Em "Hannah", o próprio título demarca o que o filme será. Um nome de mulher, solitário, apenas um nome solto no ar. "Hannah" é um desses filmes difíceis de assistir. Não porque há cenas de violência explícita ou de mortes terríveis, ou até mesmo de tortura explícita ou algo do gênero. O que o filme nos propõe é um acompanhar, um testemunhar de um cotidiano dessa mulher chamada Hannah. Isso, tão somente isso. Parece pouco, rotineiro ao extremo, mas não é. A cada nova cena é um acumular de pequenas tragédias, de irreconciliações dessa personagem com o mundo à sua volta. Gota a gota o nosso copo vai enchendo e vai nos afogando. Definitivamente é um filme de clima, de sufocamento da personagem e de nós espectadores. Sobre o passado pouco se esclarece. Todavia, para que serviria para Hannah ou nós saber dele. Não que o passado não apareça, ele até surge mais como lampejo do que como fato, como peso não como revisita.

Mas Hannah é nada mais nada menos que Charlotte Rampling que está inteira em cada cena. Sua entrega está explícita em cada contenção, ela nos oferece uma Hannah na medida certa de gestos. Que acerto na tonalidade exata dessa personagem, com destreza usa o corpo e em especial os olhares. A tristeza está presente sempre, embora nem sempre está expressa em uníssono. Pequenas variações que geram ora certezas ora dúvidas sobre essa misteriosa Hannah. O roteiro subtrai falas e sustenta ações que dizem mais do que mil palavras. Claro que para ter sucesso nessa concepção foi preciso ter uma atriz do porte artístico de Rampling. Não à toa a câmera está disponível, grudada nela a todo instante, na maioria das vezes em quadro fixos igualmente como a vida de Hannah. 

Aos poucos o Diretor Andrea Pallaoro vai reforçando tanto o abandono de Hannah quanto do seu cachorro, que não consegue lidar com a ausência do dono, marido dela, que encontra-se preso. O danado do cão não sai da porta, na esperança de que ele voltará a qualquer momento para sua alegria. Hannah já é uma idosa, trabalha como empregada em uma família de classe média alta, é desprezada e rechaçada pelo filho que sequer permite que ela veja o neto. Algo de sua vida parece ter sido roubado pelo destino. Muito da sua vida é exterioridade, ela se torna espectadora da vida, não por desistência dela, mas porque assim a vida vai se colocando para ela, escuta vizinhos, conversas e brigas no metrô. De sua vida interior pouco sabemos ou saberemos.

A vida sem-graça de Hannah é evidenciada o tempo todo, quando sai à rua e encontra uma cidade acinzentada. Seu apartamento também tem o mesmo tom, tudo ali é pálido, as cores à sua volta são sempre neutras, inclusive as de suas roupas. A vida no apartamento não vinga nunca, as flores murcham, mirram com uma celeridade absurda. Sua centelha de vida está nas aulas de teatro, onde ela consegue transformar suas dores mais profundas a serviço de uma narrativa ficcional. Esse jogo entre a representação da realidade e da ficção perpassa todo o filme. Da mesma forma em que Hannah ensaia exercícios e jogos teatrais nas aulas e em casa, na rua também se defronta com representações tanto da vida real (briga do casal no metrô) quanto da ficção, com artistas performáticos de rua e cenas de externas de filmes sendo rodadas à sua frente. Hannah vai entendendo como que o artificialismo não está só nos enredos ficcionais, eles permeiam e envolvem vários momentos da vida.           

O que o filme "Hannah" realça o persistentemente é a ausência de laços que envolvem essa mulher. Ela vai se descobrindo passo a passo, como uma desgarrada que é. Cena a cena Hannah vai se despindo de coisas, seres e de seu próprio peso emocional. O cachorro ela doa (não aguenta mais vê-lo sofrendo esperando pelo dono que não retornará), o neto ela parece com o tempo desistir, o marido ela descobre ser um mentiroso. Se a vida vai nos jogando perdas, o melhor então a fazer é continuar caminhando e indo se despindo a cada passo de um passado que oprime o presente e obstrui o futuro. Quando vai à praia espairecer encontra uma grande charlote encalhada na areia. Essa imagem nos deixa a pergunta: como devolver um animal desse de volta para o seu habitat? O curioso é perceber que essa pergunta também serve para Hannah.   

O metrô está em muitas sequências do filme. É no metrô que Hannah mais se aproxima da vida das pessoas, mas sempre como espectadora, sem nunca realmente tocá-la. Ela ali é passageira (será só ali?), como tantos outros que estão momentaneamente na mesma viagem. É justamente quando Hannah está no caminho entre a roleta e o embarque que escutamos a única música do filme, um anônimo como tantos outros que ganham a vida tocando violão nos metrôs da vida, canta "Modern Love", a bela e famosa canção de Bowie. Não dá para dizer que nesse caso tudo é casual e aleatório. Enquanto o tema das relações voláteis embala essa contagiante música, Hannah enfrenta seus abismos, a desesperança nas relações humanas e a decrepitude de seu corpo. Sim, o corpo talvez expresse exemplarmente a morte de tudo que já passou, de tudo que foi vivido e deixou suas profundas marcas na pele. Hannah tem a consciência disso, se olha no espelho e esfrega a mão em seu rosto completamente enrugado. Não existe dúvidas, aquele é o seu rosto, o seu desgaste físico.

"Hannah" pode não ser um filmaço daqueles que nos arrebatam ferozmente, mas possui uma força, um incômodo intrínseco ao nos fazer acompanhar intimamente o cotidiano dessa mulher simples, que poderia ser uma familiar nossa, ou quem sabe nós mesmos. Por tudo isso saímos de "Hannah" destroçados. Como foi difícil levantar o corpo ao final do filme. Não há uma cena que realmente choque ou agrida, que faça tudo ficar demasiadamente pesado. Entretanto, algo transcorre e se processa na alma após o filme, como se uma pedrinha junto com outra, depois mais outra e assim por diante, formasse um grande pedregulho. De certa forma, quando na cena final as portas do trem se fecham, e a câmera fica de fora do vagão, o que sentimos é um alívio, de que não mais seguiremos com ela.                   
    
Visto no Espaço Itaú de Cinema 3, no dia 03/07/2018.

Cotação: 4 e meio/5


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