Cachorros debilitados não querem largar o osso
Se tem uma cinematografia empenhada em não apagar o seu passado recente esta é a chilena. Ano após ano o tema que envolve a ditadura de Pinochet volta à berlinda através dos cineastas deste país. Recentemente passou ligeiro pelos nossos cinemas o ótimo "O Pacto de Adriana" (escrevi sobre este filme, ver no link https://cinefialho.blogspot.com/2018/05/o-pacto-de-adriana-direcao-de-lissette.html). O que é mais interessante ainda é observar o interesse das diretoras sobre o tema, caso de Marcela Said com seu "Cachorros".
"Cachorros" pode ser vista como uma obra repleta de simbolismos e metáforas. A começar pelo próprio título, inspirado em um quadro de Guillermo Lorca, onde vemos uma menina cercada por vários cachorros. É certo que as possibilidades de leitura podem ser várias, em "Cachorros" nada é definitivamente concluso. Os cachorros aparecem em duas perspectivas no filme, a do simbolismo do quadro (utilizado também como cartaz do filme) e a paixão por esses animais da protagonista Mariana, filha de um grande empresário, daqueles que se locupletaram no período da ditadura de Pinochet. Interessante como o quadro pode representar a própria Mariana cercada por diversos homens, todos opressores. Mas se tem algo de vulnerável em tudo isso são justamente os cachorros, ameaçados por um vizinho que não os quer por perto.
O filme não aborda diretamente a ditadura de Pinochet, fica por ali rondando exatamente como um cão à espreita. Todos os personagens são da elite chilena, todo o contexto recriado por Said remonta do mesmo cenário, o dos poderosos que engordaram suas contas e patrimônios no regime de exceção. A protagonista Mariana (Antonia Zegers) então vive nessa bolha, embora seja uma mulher já com seus 42 anos, que faz um tratamento para engravidar. Ela é uma mulher que se mostra bastante contraditória, é selvagem, autoritária, sedutora, destemida em seus impulsos sexuais, construída como um animal indomável e traiçoeiro. Tudo que acompanhamos no filme é a partir de seu singular ponto de vista.
O personagem do coronel Juan (Alfredo Castro, de Tony Manero), professor de Mariana de equitação é exemplar quanto aos privilégios obtidos à época autoritária e que ainda são mantidos contraditoriamente no período democrático. O comportamento autoritário está preservado em cada gesto e palavras que profere. A relação entre os dois é um misto de repulsão e atração, de uma estranha simbiose, há um que de físico, mas o que se sobressai é um algo de doentio, de cumplicidade por algo que aproxima ele da riqueza e posição da família de Mariana. De certa forma, a vida confortável de Mariana está imbricada diretamente com o passado desse homem.
Marcela Said deixa muitas brechas, inconclusões e pistas sem respostas, talvez almejando que os espectadores as completem por si mesmos. No caso do tratamento de gravidez Mariana titubeia, em alguns momentos o boicota voluntariamente. Fica uma pergunta então: será que existe em Mariana um desejo inconsciente de não deixar essa família apodrecida vingar? Suas relações com os homens são sempre mergulhadas e afogadas por conflitos, todos eles se comportam como típicos machistas. Mariana é uma personagem afeita ao enfrentamento, entretanto está totalmente contaminada por um estilo de vida que vem de berço, e de certo modo, é prisioneira dessa educação. Sua relação com o marido é de total distanciamento, nem parecem realmente formar um casal. Ela seduz o delegado de polícia Javier (com quem faz um sexo que mais lembra um estupro do que uma relação de prazer) e o próprio Coronel Juan se surpreende com as iniciativas sexuais da moça. Todos de alguma forma sempre ligados ao passado autoritário da família de Mariana.
Em "Cachorros" tudo não pode estar às claras, afinal certas famílias são assim mesmo, se caracterizam pelos segredos e mistérios. Entretanto, muitos elementos são possíveis de serem descortinados nesse enredo. É de conhecimento de todos que o Coronel Juan responde pelos seus crimes do passado, quando ainda trabalhava na polícia secreta de Pinochet. Os jornais e os protestos em frente à sua casa evidenciam isso. Em determinada hora, o pai não esconde a origem de seus bens e riqueza para a filha. Mariana, dona de uma galeria de arte, gosta de obras onde corpos são distorcidos e rostos são deformados. A diretora Said consegue pintar um quadro simbolista, onde a imagem que vemos é a de um corpo com suas carnes devoradas, todavia parece que uma matilha de cães ainda insiste em roer obstinadamente os ossos que ainda lhe restou. A cena final pode até deixar tudo em aberto, apesar de deixar claro que o período de bonança para uma determinada elite está se extinguindo.
Visto no Estação Net Rio 2, em 08 de julho de 2018.
Cotação: 3/5
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