
Pelo fim do extermínio do povo pobre, negro e jovem da periferia!
Auto de resistência é o nome dado para encobrir uma ação criminosa praticada pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. E o grande mérito desse filme é se debruçar cena a cena para mostrar o quanto essa política de segurança pública é genocida à população jovem e negra da periferia. "Auto de Resistência" tem como proposta assumir o ponto de vista dessa população que vai lenta e voluntariamente sendo exterminada pelo próprio poder público, que vê nessa população pobre algo a ser exterminada. Assim como nos anos 1970 o esquadrão da morte também o fez, mas de forma clandestina. Como não lembrar também do recente caso de Marcos Vinícius, o menino de 14 anos assassinado com um tiro nas costas pela polícia quando caminhava para mais um dia na escola? E o caso Marielle Franco, outra provavelmente assassinada por forças militares ou paramilitares e que defendia os direitos justamente dessas populações marginalizadas pelo poder público?
Esse é aquele filme que todos nós cidadãos deveríamos assistir e discutir, sobretudo por colocar a nu a violência explícita do Estado. O grande destaque são os depoimentos das mães dos meninos precocemente assassinados por uma polícia que desconhece os direitos mais elementares da população. Eles evidenciam o grau de abandono em que estão submetidos os habitantes das periferias. Os diretores Lula e Neri se empenham em dar a voz a essas guerreiras que lutam corajosamente por justiça. Eles também vão aos tribunais observar os julgamentos que na grande maioria das vezes se aplica a sentença de "legítima defesa" para os policiais agressores e assassinos. Como rotineiramente o que se tem é apenas os depoimentos dos próprios policiais, os casos são assim resolvidos, o que fortalece para se reverter a própria noção de justiça que transforma assassinos em vítimas.
Podemos dizer que a proposta central de "Auto de Resistência" é mesmo o de desconstruir esse discurso oficial, de que os policiais sempre agem em nome da lei e da justiça. No decorrer do filme fica notória a fragilidade da defesa diante às diversas chacinas cometidas no exercício profissional desses homens que deveriam proteger ao invés de matar. Esse documentário pode até parecer duro, mas devemos lembrar que assistir às atrocidades mostradas nesse filme não é nada, comparada à experiência de quem as vive em seu cotidiano. Não foi à toa que essa contundente obra ganhou o prêmio máximo na última edição do Festival "É Tudo Verdade".
A câmera torna-se uma grande protagonista do filme, na medida que assume um papel investigativo de buscar pontos contraditórios do discurso policial. Os diretores não se esquivam de incorporar materiais filmados a partir de celulares tanto das próprias vítimas quanto de testemunhas que corajosamente registraram atos abomináveis vindos da instituição responsável por zelar pela segurança de nossos cidadãos. Assim o filme serve para clarificar o desnível de tratamento recebido pelos moradores das áreas nobres e das periféricas. "Auto de Resistência" revela-se antes de tudo um documentos sobre o nosso tempo, nos mostra o quanto a favela de hoje é a continuidade da senzala, com a presença opressora dos capitães do mato (agora fardados e fortemente armados), representantes de governantes poderosos que aplicam a lei ao seu bel prazer.
Outro fato importante enfocado no filme é o acompanhamento da CPI dos autos de resistência na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Ela escuta chefes da política de segurança, inclusive o Secretário José Beltrame, grande nome responsável pela implantação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadoras) no Rio de Janeiro, mas não esquece de filmar o depoimento articulado e contundente da mãe do menino Johnatan, brutal e banalmente assassinado por forças policiais. Essa CPI, como era de se esperar, não deu em nada. Afinal, as redes que movimentam esse extermínio desses jovens, pobres e negros são os mesmos que comandam a política carcomida do Estado do Rio de Janeiro. O cinema de Lula e Neri é fundamental para que possamos enfim desconstruir as narrativas que reafirmam a opressão, onde a ação policial violenta e assassina representa tão somente a ponta de um imenso iceberg. A quem interessa a manutenção desse status quo? Essa é uma pergunta que não pode ficar sem resposta.
Visto no Estação Net Rio 2, no dia 08 de julho de 2018.
Cotação: 4/5
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