Pular para o conteúdo principal

OH LUCY! - Direção de Atsuko Hirayanagi


Resultado de imagem para Oh Lucy imagens

Por Marco Fialho

"Americanos são barulhentos, parecem animais"

             Ayako (irmã de Setsuko/Lucy) quando escuta um casal transando no quarto ao lado.

"Oh Lucy!" antes de ser um filme sobre pessoas excêntricas se constitui uma bela metáfora sobre sentimentos no Japão do século 21. O projeto do longa se desenvolveu a partir de um curta-metragem com o mesmo nome dirigido pela diretora Atsuko Hirayanagi. O que mais chamou atenção na composição desse filme foi a total integração entre forma e conteúdo. A obra narra uma paixão (parcialmente) platônica de uma japonesa por um norte-americano e essa história é narrada sob o auspícios dos ditames clássicos, isto é, o que é narrado alinha-se peremptoriamente com o como é narrado. Essa simetria transforma "Oh Lucy!" em uma obra instigante e provocadora, mesmo não parecendo numa rápida e primeira leitura. É incrível observar que até mesmo quando o cinema japonês se insinua ao cinema americano ele não consegue deixar de ser japonês até a raiz.

Há constantemente no filme um subtexto intrigante, que muito diz sobre as relações entre os dois países. Há algo de contraditório, um amor e uma repulsa embutida nas entrelinhas, um estranhamento não só linguístico mas também estético. A fotografia bem reflete essas dicotomias, o vermelho e o azul estão ali constantemente e alimentam ilusoriamente os ambientes, conferindo uma atmosfera visual artificiosa, como se tudo ali fosse inebriante. A estética insinua o neon e o tempo todo fica pairando, como se houvesse um esforço para escamoteá-la, uma flagrante elegância em disfarçá-la. Há uma preocupação gritante de se construir dois mundos no filme, quase tudo que é dito precisa sempre ser traduzido de alguma forma, e isso em si já faz transparecer o mundo que se esconde por trás da superfície que nos é oferecida pela diretora Hirayanagi. A narrativa se deixa perigosamente seduzir pela dramaturgia clássica dos filmes românticos norte-americanos. O mesmo ocorre com a  entediada personagem Setsuko (a sensacional Shinobu Terajima) que fica encantada por John, seu jovem e galã professor californiano de inglês.

"Oh Lucy!" desenvolve uma feroz crítica ao hipócrita mundo do trabalho. Mas não se restringe a isso. Estende essa crítica à própria cultura japonesa, onde o comportamento social se configura por meio de mentiras, ou por omissões de verdades e opiniões. Muitas coisas são ditas às escondidas e esse não dizer tudo, traço inerente das tradições japonesas, é incorporado implacavelmente no contexto competitivo capitalista. Cabe salientar que isso é muito bem trabalhado por Hirayanagi. Há uma linha tênue permanente na interpretação dos atores, que o tempo todo transitam entre um naturalismo e algo que esbarra no insólito e no excêntrico, às vezes dado pelas situações às vezes pelas reações dos personagens.   

Mas tudo sempre transcorre imerso em uma narrativa sem grandes surpresas. O que mais provoca estranhamentos é o próprio inusitado enredo em si. O método do professor Jonh (Josh Hartnett) é incomum e se contrapõe fragorosamente à cultura japonesa. O abraço que ele propõe aos seus alunos se choca com as relações distanciadas travadas pelos japoneses. Mais uma vez há uma metáfora, algo que causa estranhamento, porém também seduz indivíduos não habituados com esse tipo de abordagem sensorial. Setsuko é uma quarentona solteirona, carente, traumatizada por um acontecimento amoroso ocorrido entre ela e a irmã na juventude. A ideia do abraço inaugurada pelas aulas de John lhe mostra uma outra forma de demonstração de afeto, que afetará profundamente não só Lucy, assim como seu único companheiro de turma apelidado americanamente de Tom, um recém viúvo igualmente em crise com a sua pálida vida.

Em sua rotina Setsuko é francamente tomada pelo tédio. Tanto no trabalho quanto na vida pessoal tudo é morno. Quando John lhe oferece uma nova personagem, a tal Lucy do título do filme, ela embarca nessa viagem a ponto de ir atrás dele na Califórnia, sem ter qualquer ideia dos seus sentimentos por ela e mesmo sabedora que sua sobrinha foi junto para viver com ele. Esse desprendimento é uma libertação para essa personagem cheia de vida e disposta a tudo para começar enfim a viver. A solidão se coloca então como uma potente característica das personagens de "Oh Lucy!". Lentamente, todos vão demonstrando seu abandono frente à vida: sua irmã, John, sua sobrinha Mika, Tom e a própria Lucy (Setsuko).

Tudo pode parecer abertamente piegas... e realmente o é. Mas "Oh Lucy!" consegue se equilibrar exemplarmente na corda bamba entre o melodrama norte-americano e o drama intimista japonês, incorporando a narrativa de um e a sutileza do outro. Pode até ser que em algum momento se perca nessa profusão de referências tão antagônicas, mas sua força vem exatamente desse imiscuir-se contraditório, nessa corajosa decisão da jovem diretora Hirayanagi de assumir um caótico narrativo intercultural para falar de um Japão do século 21 que não consegue parar de flertar com os seus maiores algozes históricos, os norte-americanos, mesmo que seja para descobrir que não é preciso ir tão longe para descobrir o sentido mais profundo do amor.                     

Visto no Estação Net 2, no dia 29 de junho de 2018.

Cotação: 3/5

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...