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HEREDITÁRIO - Direção de Ari Aster



Uma bola no travessão

Texto de Marco Fialho

"Hereditário" é o primeiro longa-metragem do jovem diretor Ari Aster, de 31 anos. Isso é necessário mesmo de dizer bem no início deste texto, pois trata-se de uma primeira obra respeitável repleta de qualidades. Logo na primeira sequência, o talento de Aster se revela de forma contundente. De forma sedutora, a câmera panoramicamente nos conduz, nos pega pela mão e nos mostra lentamente um quarto, até alcançar nele uma maquete miniaturizada de uma casa. A câmera se aproxima dela e vemos uma pessoa deitada numa cama enquanto uma outra entra pela porta. À essa altura esses personagens já estão enquadrados no mesmo tamanho do quarto na qual a maquete era apenas um detalhe. Essa simples imagem pode despertar significados diversos, todavia, vejo duas nuances fundamentais para destacar: uma, que os personagens são como que bonecos no contexto da história, porém, em outra perspectiva, essa imagem nos diz que tudo o que veremos a seguir está posto em um set e é uma representação, enfim, que tudo é tão somente um filme.

Nos tradicionais filmes de terror, diversos mistérios giram sempre em torno de uma casa. Em Hereditário isso não é diferente. O filme começa com o anúncio da morte da matriarca da família e a partir desse momento, tudo começa a desmoronar, várias tragédias vão se abatendo sucessivamente sobre esse núcleo familiar, composto pela mãe Annie (Toni Collette), o pai Steve (Gabriel Byrne), o filho Peter (Alex Wolff) e a filha Charlie (Milly Shapiro). Os fantasmas estão presentes na história, o que faz a obra adquirir um tom sobrenatural.

Aster consegue com "Hereditário" ir longe em um gênero tão desgastado por produções que normalmente não apresentam muita consistência. Acerta muito no clima que constrói para a sua obra, imprime uma tensão permanente, vibrante até o final. Tudo sustentado por uma fotografia sombria, uma maquiagem sem exageros, no ponto certo, uma música entremeada com outros sons angustiantes (diga-se de passagem, o som é preciso). Outro destaque está nas interpretações. Toni Colette como Annie dá o tom, mas quem rouba a cena mesmo é  Milly Shapiro, incorporando uma Charlie perturbadora e enigmática. Desde o começo sua presença deixa claro sua importância para a história. Outro destaque são os harmoniosos movimentos de câmera. Alguns desses movimentos lembram passos de dança executados por uma grande bailarina de tão leves que são. 

"Hereditário" flerta com muitos filmes de terror importantes do cinema. Quero citar apenas dois. Tem um parentesco interessante com "A Hora do Lobo" de Ingmar Bergman, por trazer elementos aterrorizantes, os relacionando com os pesadelos e o inconsciente. Lembra também o terror psicológico de "O Iluminado", de Stanley Kubrick, em especial pela forma em que a personagem Annie vai visivelmente, a cada nova cena, enlouquecendo.

O ponto mais expressivo de "Hereditário" está em sua forma de trabalhar pelo viés do terror temas já batidos e até comuns na história do cinema, como o da culpa, o peso das tradições familiares, a complicada e complexa relação entre pais e filhos, a infância reprimida, entre tantos outros que poderíamos aqui enumerar. Durante os três quartos do filme, somos contagiados por esse pungente descortinar das contradições vindas dos Graham, esse exemplar protótipo de família burguesa e aristocrática. Os pesadelos e ataques de sonambulismos desenham belamente as personalidades dos personagens e seus conflitos. Cada um carrega literalmente seus fantasmas, suas culpas por ter falhado em algum episódio da vida, seja por amor ou sua ausência (caso de Annie em relação a Peter), seja por egoísmo para viver momentos de prazer (caso de Peter).

Todas essas potencialidades que vão se acumulando no decorrer do filme e enlaçam ferozmente o espectador, todavia, caem por terra nas cenas finais. Todas essas camadas solidamente construídas são desmoronadas por um desfecho que privilegia tão somente o sobrenatural pelo sobrenatural. O problema não está propriamente no sobrenatural, porém na forma pela qual ele se insere e encerra a obra. Todo o vigor que serviu de alicerce para um final retumbante, que pudesse demolir todo aquele castelo de areia que era aquela família, um arquétipo inigualável de hipocrisia e decadência, se esvai por uma solução que esvazia todo o teatro ensaiado durante quase duas horas. Annie especialista em maquetes, esboça a miniatura de sua própria casa, uma representação fantástica e frágil daquele universo de papel que era a vida de cada um dos personagens. Infelizmente, não sabemos se por pressão mercadológica ou de produtores ávidos por um sucesso fácil, o talentoso Ari Aster perdeu a oportunidade de inscrever seu filme dentre as obras-primas do cinema. Elementos ele tinha de sobra. Jogou um bolão, chutou bem, mas a bola bateu forte e em cheio no travessão. Uma pena.
                   
Visto no Kinoplex Tijuca 4, no dia 21 de junho de 2018.

Cotação: 3 e meio/5





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