Um tributo contra a caretice!
A grande sensação que temos durante a projeção do documentário "A vida extra-ordinária de Tarso de Castro" é de que o Brasil, em 40 anos, encaretou e emburreceu além da conta. Como é bom assistir a um filme apaixonado pelo seu personagem, que o conhece com profundidade e anseia que fiquemos inebriados por ele.
A grande sensação que temos durante a projeção do documentário "A vida extra-ordinária de Tarso de Castro" é de que o Brasil, em 40 anos, encaretou e emburreceu além da conta. Como é bom assistir a um filme apaixonado pelo seu personagem, que o conhece com profundidade e anseia que fiquemos inebriados por ele.
Tem
documentários que são fundamentais e valorosos no resgate de um determinado
fato ou personagem do passado. "A extra-ordinária história de Tarso de
Castro" é um desses filmes. Se o personagem em questão quase não é citado
hoje em dia, sinal de que esse fato merece alguma atenção na pesquisa. Essa
indagação faz-se mesmo necessária, afinal nos últimos dias sondei amigos
próximos para saber quem conhecia esse grande nome do nosso jornalismo, e ninguém sabia de
quem se tratava. O erro fatalmente não é das pessoas. O documentário investiga
esse dado incômodo, e isso, por si só, já muito o valoriza como obra. Por que Tarso, um dos fundadores
do cultuado jornal "O Pasquim", e o mais ativos de seus
integrantes, acabou injustamente à margem do processo. Ao mesmo tempo que
Jaguar, Ziraldo, Paulo Francis, Luiz Carlos Maciel, Millôr Fernandes e Sérgio
Cabral são sistematicamente lembrados, porque ele lentamente caminhou para o
ostracismo?
Mas que viagem os diretores Zeca
Brito e Leo Garcia nos brindam com esse filme! São 90 minutos deliciosos, muito bem
reconstituídos, com imagens atuais mescladas com as de arquivo. Uma pesquisa
minuciosa que amarra com maestria passado e presente. Os depoimentos individuais, ao invés de serem tomados de frente para a câmera, procedimento comum nos documentários tradicionais, são captados com os personagens ao telefone, uma homenagem ao próprio Tarso que
adorava falar ao telefone.
Entretanto o que chama a atenção
nesse filme é sua pulsão, a beleza de retratar um personagem intenso, vibrante
e cheio de paixão em pleno regime de exceção. E isso não deixa de ser
revigorante para esse tempo perverso atual, autoritário, profundamente desigual,
mas encoberto por um fino véu de uma falsa democracia.
Os diretores edificam seu
personagem certamente com muitos brilhos, mas deixam também emergir dúvidas
sobre o seu caráter, especialmente quando o assunto eram as mulheres. Mulheres
que segundo todos e todas eram uma de suas grandes paixões, junto com a bebida e
o jornalismo.
Interessante como os diretores estruturam alguns depoimentos em conversas, quase sempre em bares, lugar predileto de Tarso, onde ele acreditava ter nascido a própria ideia de jornalismo. Suas aparições em programas de TV captam sua vitalidade, sua irreverência e sua total descrença amorosa e contraditória ao mesmo veículo. Se hoje a televisão segue padrões rígidos, o que vemos era um tempo em que havia espaço ainda para improvisos e momentos de contestação.
O cinema aparece como personagem
do filme, fazendo paralelos de seus personagens com Tarso. "Todas as mulheres do
mundo", de Domingos Oliveira é sempre lembrando para se falar da sua
relação com as mulheres, assim como Glauber Rocha, com "A idade da Terra",
sua obra mais desestruturante, é içada para falar do espírito livre e do ódio
pelos poderosos que tão bem sintetizava a personalidade contestadora de
Tarso.
O frescor e a paixão de "A vida
extra-ordinária de Tarso de Castro" magnetizam a plateia, pois enquanto
vivemos uma época de apatia e ausência de inteligência independente, a figura
de Tarso funciona como inspiração, entretanto também como um alerta de
que a acomodação dos espíritos pode causar uma atrofia irrevogável.
Visto no Estação Net Botafogo 2, no dia 01/06/2018.
Cotação: 3 e meio/5
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