
A Guerra do Paraguai acabou? Crítica de Marco Fialho
A guerra do Paraguai é uma das páginas
que mancham a história do Brasil, um marco histórico a ser refletido para que
nossas relações com países vizinhos e conosco mesmos sejam profundamente transformadas. Difícil pensar esse filme de Luiz Rosemberg Filho sem ter em mente o livro clássico
do escritor Julio José Chiavenato, “Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai”,
pois nele a tragédia com o país vizinho é ampliada ao revelar as fragilidades
de nossa organização social. Inevitável para quem leu esse livro não tê-lo como
um espectro ao assistir ao filme de Luiz Rosemberg Filho.
Ao promover o encontro de um soldado
brasileiro com uma trupe teatral de hoje, Luiz Rosemberg Filho nos coloca em
frente a um tenebroso espelho, passível de revelações nada agradáveis de serem
vistas. Trata-se de um confronto desconfortável, que nos mostra facetas
obscuras de nossa formação social, sobretudo a violência, o genocídio, a
intolerância, apenas para citar algumas delas aqui.
Por isso, dizer que o forte deste filme
são as suas camadas não é exagero. Rosemberg nos brinda com muitas metáforas,
subtextos e tiradas reflexivas em sua obra. Mas é a sua mise-en-scéne
teatral, marca inclusive de sua mais atual filmografia, que possibilita que uma
enxurrada de significantes brotem incessantemente de seu filme. Amparado por
atores muito íntimos do universo teatral, com destaque para o trabalho
primoroso de Patrícia Niedermeier, o diretor espraia sua dramaturgia densa sob
os auspícios de uma fotografia expressiva em preto e branco. Os
planos-sequência do filme são conduzidos por uma câmera incisiva que passeia
ruidosamente pelo cenário e rostos dos personagens, nos entrega sempre algo de
angustiante. A nova “batalha” que nos é mostrada em tela parece traduzir o quão
difícil foi produzir cada uma das cenas. Pois há uma similitude entre aquela
trupe e a equipe de filmagem, afinal produzir filme independente no Brasil
sempre foi assim, uma luta. O cinema como elemento desbravador e de guerrilha é
o que faz mesmo o produtor e distribuidor do filme, o incansável Cavi Borges.
Talvez Rosemberg tenha feito com esse
filme uma obra das mais graves sobre a relação entre passado e presente, e mais
ainda sobre o poder e a importância das artes em um mundo eivado de
intolerância política e social. Vale salientar a epígrafe de Mario de Andrade,
colocada no início do filme, onde diz que “o passado é lição para meditar, não
para repetir” como sustentáculo filosófico do filme. Do passado vem um
“fantasma” de um soldado brasileiro (Alexandre Dacosta), que por sua vez traz
em sua alma um encontro com um fantasma de um soldado paraguaio (Chico Diaz). O soldado
brasileiro encontra em seu caminho uma trupe teatral mambembe, na qual a
carroça é puxada por duas mulheres ao invés de cavalos. Esse é o peso de se
trabalhar com arte no Brasil. Rosemberg trabalha então duas camadas
inconciliáveis: de um lado todo esforço artístico de pensar o mundo sob
perspectivas de mudança e por outro um discurso do passado, autoritário e
truculento, que na verdade ainda muito permeia nossa sociedade. São camadas de
tempo que coabitam ferozmente e que traduzem uma metáfora poderosa acerca do mundo intolerante no qual
vivemos.
Visto na Mostra de Cinema de Tiradentes, no final de janeiro de 2017.
3/5
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