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O DIA DEPOIS - Direção de Hong Sang-Soo


O cinema de Hong Sang-Soo e a reinvenção do cotidiano

Crítica de Marco Fialho

Um dos cineastas mais produtivos do mundo, o coreano Hong Sang-Soo nos brinda com mais uma de suas pérolas, o filme "O dia depois". Várias de suas marcas como diretor estão presentes nesse novo trabalho. O que vem chamando atenção nesse coreano é justamente isso, que a cada novo filme fica evidente que sua obra não pode ser estudada isoladamente, sob o risco de um esvaziamento estético significativo. Há uma clara intenção de repetição de procedimentos cinematográficos, jogos constitutivos temporais, de construção de mise-en-scène e interpretações que nos impele para um entendimento mais amplo desse universo. Só em 2017, Hong Sang-Soo nos brindou com 3 obras substanciais e importantíssimas ("Na praia à noite sozinha", "A câmera de Claire", e essa agora, "O dia depois").

Todas as histórias dos filmes de Hong Sang-Soo retratam situações cotidianas, até certo ponto banais, se assim considerarmos nossas pueris vidas. Todas elas envolvem relacionamentos humanos de amizade, sexo e amor. O que o diretor vem conseguindo com suas obras é por meio do cinema resignificar esses temas corriqueiros e já bastante batidos. "O dia depois" traz apenas quatro personagens: um editor de livros, sua esposa, a amante, também ex-funcionária de seu negócio e sua nova funcionária, em seu primeiro dia de trabalho, interpretada pela sua atual musa, a atriz Kim Min-hee. Mais uma vez, Sang-Soo investe em um jogo cinematográfico inusitado que reflete a relação entre realidade e imaginação.

Tal como já havia também feito em obras suas, Hong Sang-Soo realiza um trabalho de aparente simplicidade de produção, mas complexo em sua proposta de mise-en-scène, montagem e roteiro. Se hoje existe um cineasta original, com uma escrita indelével e uma marca inconfundível, esse artista chama-se Hong Sang-Soo. Se ele já brincou com a confusão entre realidade e ficção em "À noite na praia sozinha", onde ele introduz na ficção sua relação amorosa com a atriz Min-hee (que envolve muitas polêmicas na imprensa coreana), agora em "O dia depois" ele traz o personagem de um editor, vivido por Hae-hyo Kwon, em uma discussão sobre o que seria a realidade, com sua nova funcionária (também interpretada por Min-hee).

Todavia a grande surpresa dessa obra acontece perto do fim, quando Sang-Soo faz um tipo de "pegadinha", nos induzindo a achar que ele usaria o mesmo artifício de "Certo agora, errado antes", de jogar com o ardil do recomeço da história sob um novo viés. Por alguns instantes pensamos que é exatamente isso que ocorrerá, mas o diretor nos surpreende, pois sem mais nem menos uma certa linearidade se restaura. A construção do tempo em Sang-Soo precisa ser refletida e nessa obra é possível se abrir uma discussão a respeito. Uma de suas características como diretor é esbanjar uma consciência e controle do tempo diegético em suas obras. Em "O dia depois", o tempo é visivelmente esgarçado, várias bebedeiras são tomadas no espaço de um dia, que parece interminável, pois nos é dito insistentemente que se trata do primeiro dia de trabalho da personagem de Min-hee.

O tempo dedicado ao tal dia depois do título do filme é mínimo, Sang-Soo trabalha muito mais o primeiro dia da funcionária, mas não precisa muito bem quando seria o dia do reencontro, do retorno dela ao seu escritório. E essa imprecisão temporal ocorre em nós espectadores porque o editor trata a ex-funcionária de um único dia de trabalho como desconhecida. O dia depois então não seria o dia seguinte, mas sim, um outro dia qualquer mais à frente. Ele não a reconhece a princípio e incia-se então um jogo de reconhecimento, o que para nós espectadores é um assombro, já que nas imagens anteriores, o filme praticamente todo, eles estavam ali vivendo todo aquele tempo que esforçavam a lembrar. Seria o efeito da bebida, afinal beberam muito nesse único dia. Mas o que quero aqui salientar é essa brincadeira de Sang-Soo com esse tempo esquecido, com a própria morte de nossa vida cotidiana, de como nosso dia-a-dia nos mata implacavelmente pela repetição excessiva. A nossa memória fragmenta o tempo e nos revela apenas lembranças esparsas e imprecisas.   

Dentre os traços de seu cinema e das escolhas narrativas que aparecem mais em toda a sua obra citamos a presença constante das bebidas alcoólicas. Elas ainda precisam ser melhor estudadas em seu conjunto, mas acredito que elas tenham duas vertentes principais na obra de Sang-Soo: a de liberação psíquica, mesmo reconhecendo que o aspecto psicológico não é foco de seus filmes, pois representam um momento onde os personagens podem ser eles, abrir seus pensamentos e principalmente emoções. Não à toa, o choro deslavado aparece duas vezes nesses momentos de bebedeira. Em outra vertente, parece que mais que a bebida em si, o diretor quer resgatar o ato de sentar-se na mesa para uma conversa, um prosear, não como um fator de união, mas sim de preservação da individualidade. E o posicionamento da câmera é determinante nesse sentido, de garantir que cada personagem mergulhe em si mesmo.

Mas essa câmera está ali por outro motivo, também para almejar uma demarcação de códigos cinematográficos, para dialogar com os procedimentos do como mostrar uma conversa. Não à toa, o artifício da mesa é tão estratégico para Sang-Soo. Ela serve para situar os personagens um de frente para o outro, jamais optando pelo recurso clássico do plano/contraplano. Essa imagem do todo e não das partes entrecortadas é preciosa para a reflexão proposta pelo cinema de Sang-Soo. A partir do enquadramento ele joga com os nossos desejos em relação àquela conversa, nos aproxima dela usando o zoom, como se aquele fosse um desejo nosso de invasão, não dele como diretor. O zoom e as panorâmicas em Sang-Soo funcionam como um jogo, um brincar com o voyeurismo nosso e o dele. O não retalhamento da cena propicia o desenrolar de um jogo entre os atores, como se o que acontecesse ali pertencesse inteiramente a eles. Mas Sang-Soo reserva a si um espaço poderoso, pois cabe a ele como diretor ocupar o espaço físico e conceitual do por trás das câmeras. São esses dois campos, o dos atores em cena e o dele por trás das câmeras, ambos bem delimitados por Sang-Soo e explorados por ele com um radicalismo estético extremo, que faz suas obras tão pessoais, interessantes e fundamentais para o cinema do Século 21. 

Mas a câmera no cinema de Sang-Soo é um caso mesmo à parte e merece toda a nossa atenção. Os seus movimentos de aproximação dos personagens são fascinantes e muito característicos, como já explanamos. O método adotado nas filmagens por Sang-Soo efetiva uma declaração de amor a seus atores, pois o trabalho deles é delimitado por um respeito ao seu espaço. Se há um diretor que pensa sua obra em termos de um método de trabalho coerente e vem se empenhando nele, e que por isso mesmo merece ser estudado e destrinchado, esse é Hong Sang-Soo. 

Visto no Estação Net Rio 3, em 14/04/2018.

Cotação: 3 e meio/5

Comentários

  1. Excelente filme e após a leitura deste comentário,muitas reflexões ficaram mais claras..Parabens

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