
O aniquilamento espiritual de uma cultura
Crítica de Marco Fialho
A primeira cena de Ex-pajé, uma imagem de arquivo de 1969, talvez diga mais do que se imagina a princípio, e muito sintetize o que veremos no restante do filme: o primeiro contato dos indígenas da tribo Paiter Suruí com os homens brancos. O filme aborda não a fase da evangelização propriamente dita, mas sim as suas consequências, o resultado do processo acachapante no qual os habitantes originários passaram, em especial nos últimos cinquenta anos, quando as mãos impolidas do Regime Militar pesou sobre eles. Mas toda essa perspectiva histórica no filme vai recair sobre o próprio ex-pajé Perpera, o protagonista dessa impactante obra.
Logo nos créditos, Bolognesi explicita bem aonde quer chegar. Cita Pierre Clastres quando esse diz, a grosso modo, que "o genocídio mata o corpo, mas o etnocídio mata o espírito." Ser mais elucidativo que isso é impossível. O filme passa então a narrar um cotidiano contraditório, um encontro desigual entre duas culturas, uma opressora e outra oprimida. As vestes, os pertences como um todo (o carro e a moto são tão exemplares) espelham muito bem como se estabelece essa relação intercultural. A chegada da tese em francês, também feita por um branco, sobre sua tribo é muito significativa. Segundo eles mesmos dizem: "foi escrita na língua deles". No fundo eles sabem que existem esses outros, os brancos e suas esquisitices. "Acho que é francês", diz o filho de Perpera, o que transparece o quanto sujeito e objeto estão apartados radicalmente..
A partir de então o cotidiano do ex-pajé começa a ser encenado para a equipe, a pedido dela inclusive. Ele joga numa lotérica, faz compras em um super-mercado, enfim, encena para a câmera de um branco sua suposta vida de índio embranquecido. Tudo soa com certo artificialismo. A encenação, mas também a própria vida de branco de Perpera.
Realmente são as imagens, a camada que mais choca nesse filme. Bolognesi não cria discursos explícitos, apenas prefere acompanhar e induzir uma reencenação do cotidiano, e isso é bem explícito em sua abordagem. O seu passado de pajé que fique bem claro: "é coisa do diabo!!". O apagamento cultural, o etnocídio, está em todas as cenas. Nessa nova conjuntura cultural, resta ao ex-pajé o cargo de porteiro e faxineiro da igreja evangélica. Há uma clara inversão de valores. Ele passa de uma função alta dentro da hierarquia de sua tribo, de líder espiritual a um mero observador de entrada e saída de pessoas na igreja.
Mas Bolognesi com simplicidade extrema, sem usar planos, enquadramentos ou uma montagem mirabolante explora as minúcias, os pequenos atos em que a força de uma cultura centenária consegue sobreviver, mesmo que sub-repticiamente. Na medida do possível os indígenas resistem, muitas vezes até sem perceberem. Entretanto a câmera está ali para registrar e reafirmar essa resistência cultural ao mostrar as pinturas nos corpos, a pescaria, o fabrico de arcos e fechas, os hábitos alimentares, a cultura de subsistência. Os indígenas tentam se organizar, se armando com armas de fogo dos brancos, para perseguir os madeireiros ambiciosos que insistem em destruir seu habitat. Mas a câmera também flagra as batatas fritas, a máquina de lavar roupa, os remédios de farmácia, o Facebook, o videogame na mão incontrolável de uma criança e sutilmente um livro de Max Lucado.
O que Bolognesi quer construir e reafirmar são as contradições desse mundo tão bizarro, inclusive para os nossos olhos brancos. Mas será que o processo de aculturamento revelado pelo filme é tão somente um fenômeno para o mundo dos indígenas? O filme indaga a eles, todavia indiretamente também nos interroga. Talvez o processo deles, aos nossos olhos possa parecer de um estranhamento medonho, mas será que nós nessa história seríamos tão exógenos assim, ou também estaríamos no mesmo barco à procura de alguma identidade perdida? Ou nosso processo estaria tão avançado que nem mesmo identificamos mais como similares de um mesmo jogo cultural.
Porém o bem material e tecnológico pode também ser uma armadilha contra a cultura do homem branco. No celular, os indígenas podem inesperadamente aprender uma cantiga de guerra de seu povo. O filme o tempo todo nos pergunta o que é cultura e qual o seu papel na sociedade, ou sociedades, pois nesse contexto bem pode ser mais de uma.
O peso da cultura se impõe em duas cenas específicas: numa primeira, Perpera demonstra medo do escuro e não se permite dormir sem ter uma luz acessa. Há um sintoma claro de má consciência, de medo de espíritos atentos ao descaso às práticas centenárias. Mas quando uma das matriarcas da tribo fica doente, picada por uma cobra, e é levada em vão para um hospital branco, asséptico e frio com seus remédios artificiais que nada resolvem seu problema, tudo começa a se transformar. Perpera é intimado por outros indígenas de sua tribo, a voltar à cena como pajé e ajudar a anciã em sua recuperação. Assim, por meio de imagens e ações específicas, Bolognesi reafirma o discurso guerreiro dos Paiter Suruí e desmascara de vez a farsa da supremacia de uma cultura sobre outra.
Tal como Ex-pajé se constitui como obra, ele nos mostra como o cinema pode ser eficaz, e o quanto pode contribuir para trazer à tona questões relevantes e contraditórias para a nossa sociedade. Isso justifica os importantes prêmios que o filme vem acumulando nos últimos meses. Há um clima de que algo precisa ser feito. O prêmio da Crítica no Festival "É Tudo Verdade" é um exemplo, e o prêmio especial de melhor documentário pelo Júri, dentro da mostra panorama do Festival de Berlim também. Dentro ou fora do país assistir Ex-pajé é como nos colocar à frente de um imenso espelho, cuja imagem que nos chega vem invertida.
Visto no Espaço Itaú de Cinema 3, em 14/04/2018
Cotação: 3 e meio/5
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