
O trem, o pai, a filha e as Sete Quedas
Crítica de Marco Fialho
Cada vez mais aparecem em festivais Brasil afora filmes que narram experiências familiares, a partir de uma vivência do próprio diretor/diretora. Mas como entender essas obras como pertencentes a todos nós, não apenas como um mero registro de uma relação entre um indivíduo e sua família, o que reduziria o filme a um interesse meramente pessoal do realizador. Esse desafio, "Construindo pontes", dirigido por Heloísa Passos, consegue ultrapassar com louvor.
O filme abarca além da questão da relação familiar, claro, outros aspectos relevantes para nós público de cinema, como o próprio questionamento sobre o que é um filme, como ele se constrói, pois assim como as pontes ele também precisa ser edificado, por mais que sua elevação não se dê pelos mesmos critérios de cálculo e matemáticos de uma ponte. Mas será mesmo que não? Densidade, concretude, ordenação de planos, enquadramentos, movimentos de câmera, tensões narrativas e tantos outros elementos formam um arcabouço fílmico, a concretude na qual possibilitará depois irmos à sala de cinema para assistir ao resultado daquele processo.
Todavia, pensando também nas pontes, na sua indubitável concretude, sua utilidade pública, seu uso para futuras gerações que usufruirão daquele bem construído em e por um contexto político, o que o filme faz é remexer nessa impressão precisa e trazer dados para além de sua construção, enredos de contextos que justificavam construções faraônicas. Como bem já disse Marx "os homens fazem história sem sabê-lo" e é essa camada mais subterrânea que Heloísa se esforça para trazer à tona. No filme, submergir nada mais é do que um movimento de trazer à tona os fatos, resignificá-los sob um outro contexto. O seu anseio em relação ao pai é esse, o de fazê-lo ver o quanto que os projetos da chamada "revolução" de 1964 tão inócuo foi por edificar sem mexer na estrutura de poder e de miséria do país.
Mas "Construindo pontes" não é um filme somente sobre o passado, ou uma tentativa de reconciliação familiar, vai além, fala de um presente que se põe frente a um precipício cuja visão é um passado não tão longínquo assim quanto pensamos. A relação entre ditadura militar, impeachment de Dilma e perseguição midiática a Lula estão todos presentes no mesmo filme, como "Construindo pontes" fosse um fio a resgatar o passado do precipício da história para o presente.
Não à toa a imagem simbólica mais recorrente é a da Sete Quedas e a do alagamento realizado para a construção da Hidrelétrica de Itaipu, na fronteira do Paraguai. O que incomoda Heloísa é esse apagamento sistemático, de histórias e de paisagens à mercê de interesses meramente desenvolvimentistas, típicos do período do milagre econômico. O filme é muito sobre isso, sobre o que foi e é submergido pelos interesses de uma minoria egoísta.
Uma certa hora, Heloísa, como narradora do filme que é, cita que na infância vivia em uma espécie de "bolha", não só por estar protegida de um mal hipotético que poderia vir do mundo de fora, mas também como que alijada do que ocorria com diversas pessoas que eram presas e torturadas pelo regime, sendo algumas delas assassinadas. De certa forma, essa narração de Heloísa é no mínimo curiosa. Ela nos põe numa situação de identificação, como se as aflições dela fossem também as nossas. De novo fatos passados e presentes se entrelaçam, pois são os de agora sobretudo que nos filiam ao filme, nossa angústia de impotência de ver o país indo violentamente cachoeira abaixo. Não que o pai, Seu Álvaro, seja um vilão. Inclusive em momento algum isso ameaça aparecer. Há um carinho e respeito que impregna as discordâncias.
Há que se fazer um registro importante. Heloísa é a um só tempo personagem e narradora. Tal como faz João Moreira Salles em seus filmes, há uma Heloísa que em off analisa o conflito, que intervem como diretora no filme. O que enriquece muito essa obra é a sua capacidade de se colocar no lugar da construção. O tempo todo o processo está sendo analisado e reposicionado. Fica claro isso na cena em que Heloísa leva o pai para o cenário da inundação provocada pela dinamitação das Sete Quedas. Faz a tomada 3 vezes e nada consegue arrancar do pai. Essa sequência é fundamental ao mostrar as projeções dela confrontadas como diretora com o fato em si. O final vislumbrado então cai por terra.
Antes mesmo do final, mas já perto dele, acontece uma situação inusitada. O carro deles é parado na estrada para realização de uma pesquisa do DNIT. O educado funcionário faz perguntas sobre a viagem deles. Como enquadrar essa viagem em alguma caixa pré-determinada? As respostas deles são imprecisas, até mesmo atabalhoadas. Como explicar uma busca interior para uma autoridade? Sem planejar, Heloísa ganha um presente inusitado. É chamada a dar motivações que lhes são caras e que não são tão simples de responder em um questionário pré-formatado, como são esses encomendados. Heloísa sabe incorporar a cena para enriquecer seu filme. "Aonde estão indo?", "É a passeio ou a trabalho?". Tudo está tão imbricado a essa altura que as perguntas soam como engraçadas. O interessante é que nesse caso não há encenação, visivelmente há uma surpresa.
Heloísa em uma de suas narrações em off certa hora diz: "família é o não dito". Podemos aqui pegar essa fala para sugeri-la para um entendimento do próprio filme. Em outro momento, o pai está capinando a porta de casa e ela está registrando. Há um problema no cortador e ele diz que não será possível continuar. Então ele pergunta se ele pode continuar fingindo e assim o faz, fingindo cortar a grama. Essa cena me remeteu ao clássico "Nannok", de Robert Flaherty, quando esse solicita ao esquimó que ele realize tarefas cotidianas para sua filmagem. Esse diálogo em "Construindo Pontes" revela que o mostrar do processo cria um elo de confiança com o espectador. Nos remete para o que é dito para além das palavras e imagens.
Não casualmente a cena final praticamente nada é falado. Ela narra poderosos encontros e reencontros. O encontro de Heloísa com uma ponte construída pelo pai, um reencontro do pai com sua criação e o encontro lógico entre pai e filha. Porém mais que tudo, arqueologicamente, fala do nosso encontro com o próprio cinema. Quando os dois estão ali na ponte olhando ao mesmo tempo temerosos e felizes a bela paisagem àquela altura, eis que surge um trem. Esse bendito trem que nos remete de imediato aos Irmãos Lumière, com a câmera colocada no mesmo ângulo na qual foi posta na estação Ciotat. Vemos o trem mais uma vez a nos atropelar, a nos invadir. Mas como o trem é de carga, sua invasão, tal como a de uma caudalosa cachoeira, nos parece infinita. Devido a todos os significados dos encontros e reencontros que o filme nos proporciona é nessa imagem que desejamos, nós amantes do cinema, morar para toda eternidade.
Visto no Espaço Itaú de Cinema, em 20 de abril de 2018.
Antes mesmo do final, mas já perto dele, acontece uma situação inusitada. O carro deles é parado na estrada para realização de uma pesquisa do DNIT. O educado funcionário faz perguntas sobre a viagem deles. Como enquadrar essa viagem em alguma caixa pré-determinada? As respostas deles são imprecisas, até mesmo atabalhoadas. Como explicar uma busca interior para uma autoridade? Sem planejar, Heloísa ganha um presente inusitado. É chamada a dar motivações que lhes são caras e que não são tão simples de responder em um questionário pré-formatado, como são esses encomendados. Heloísa sabe incorporar a cena para enriquecer seu filme. "Aonde estão indo?", "É a passeio ou a trabalho?". Tudo está tão imbricado a essa altura que as perguntas soam como engraçadas. O interessante é que nesse caso não há encenação, visivelmente há uma surpresa.
Heloísa em uma de suas narrações em off certa hora diz: "família é o não dito". Podemos aqui pegar essa fala para sugeri-la para um entendimento do próprio filme. Em outro momento, o pai está capinando a porta de casa e ela está registrando. Há um problema no cortador e ele diz que não será possível continuar. Então ele pergunta se ele pode continuar fingindo e assim o faz, fingindo cortar a grama. Essa cena me remeteu ao clássico "Nannok", de Robert Flaherty, quando esse solicita ao esquimó que ele realize tarefas cotidianas para sua filmagem. Esse diálogo em "Construindo Pontes" revela que o mostrar do processo cria um elo de confiança com o espectador. Nos remete para o que é dito para além das palavras e imagens.
Não casualmente a cena final praticamente nada é falado. Ela narra poderosos encontros e reencontros. O encontro de Heloísa com uma ponte construída pelo pai, um reencontro do pai com sua criação e o encontro lógico entre pai e filha. Porém mais que tudo, arqueologicamente, fala do nosso encontro com o próprio cinema. Quando os dois estão ali na ponte olhando ao mesmo tempo temerosos e felizes a bela paisagem àquela altura, eis que surge um trem. Esse bendito trem que nos remete de imediato aos Irmãos Lumière, com a câmera colocada no mesmo ângulo na qual foi posta na estação Ciotat. Vemos o trem mais uma vez a nos atropelar, a nos invadir. Mas como o trem é de carga, sua invasão, tal como a de uma caudalosa cachoeira, nos parece infinita. Devido a todos os significados dos encontros e reencontros que o filme nos proporciona é nessa imagem que desejamos, nós amantes do cinema, morar para toda eternidade.
Visto no Espaço Itaú de Cinema, em 20 de abril de 2018.
Cotação:3/5
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