
O poder da intimidade desnudada
Crítica de Marco Fialho
A "Trama Fantasma" é o filme mais maduro de Paul Thomas Anderson. Definitivamente feito para gente grande. Uma obra repleta de sutilezas, jogos cinematográficos e ardis humanos. Visualmente é impecável, de um requinte raramente visto, uma obra-prima ímpar, tamanho seu rigor. É um deleite de ver e de pensar nas suas estruturas: imagéticas, sonoras, narrativas, interpretativas, simbólicas, psicológicas, filosóficas, enfim, um mar envolto de camadas de significados e significantes. O que ficamos nos perguntando o tempo todo durante a projeção é se prestamos atenção na superfície ou se buscamos as sombras mais profundas, mais recônditas. Nos enredamos no tátil ou divagamos em sua atmosfera?
Todo o começo do filme foi pensado para se construir uma atmosfera, uma ambiência de classe. Nela, a forma também se estabelece como conteúdo, como mensagem. Não à toa a personagem de Daniel Day Lewis, Reynold Woodcock, é um estilista de moda, um homem preocupado com a elegância do mundo, com seu aspecto visível, com as formas. E é a forma da garçonete Alma (Vicky Krieps) que o atrai, seus contornos perfeitos e rapidamente ela se torna a sua musa inspiradora. Reynold preza a constância, a permanência dos hábitos e princípios, há nele uma tendência a fixidez e ao refinamento excessivo. Alma pertence a outra classe. É mundana, mas sabe o que quer, apesar de aparentar fragilidade.
Antes de ser um filme sobre o amor, "Trama Fantasma" é sobre as relações, os quebra-cabeças que circundam uma determinada convivência. Nesse jogo fascinante os olhares entre as personagens tornam-se também personagens. Entretanto é o olhar que Paul Thomas Anderson reserva para cada personagem, cada plano milimetricamente construído que mais impressiona nessa obra. Talvez o mais certo seria dizer que o filme advém de uma necessidade do diretor em entender a própria natureza do olhar. Ele quer que olhemos, não como meros voyeurs, nos atiça a querer mais, a ver mais. Há uma ideia de desconstrução de uma determinada maneira de ver o mundo, de aceitar o mundo por meio do olhar condicionado e superficial. Por isso também essa é uma obra sobre a intimidade, pois somente ela é capaz de descortinar o mundo das aparências, de revelar as entranhas de um lar, uma perversidade inerente às convenções sociais.
Algumas frases ditas no filme explicitam muito sobre o mundo que o diretor quer construir para os espectadores e o quanto que ele trabalha a personalidade de Alma e Reynold. "não gosto de começar um dia com um embate"; "o que quer que se faça, faça com cuidado"; "uma casa que não muda é uma casa que morre"; "eu sou forte!". Todas essas palavras não estão ali para ilustrar as cenas, mas sim para que as confrontemos com as cenas. Da mesma forma que a presença da música se estabelece como um embate com as cenas e os personagens. Trilha musical utilizada com uma precisão de mestre, de quem sabe o que cada nota representa para o filme. A violência em "Trama Fantasma" pode passar até desapercebida, mas ela está ali, corroendo a todo o instante a cada nova cena.
Sob os auspícios da intimidade, e de sua desconstrução, Paul Thomas Anderson trata o imbricamento entre o mundo da moda e o ambiente aristocrático que a constitui e sustenta. Um ser obcecado, o olhar dela de encantamento ao seu trabalho e seu perfeccionismo. Tamanha entrega pelo detalhismo denuncia também uma patologia. Lentamente então o filme se caminha para os imbróglios doentios, para uma perversão requintada e sutil. Os sons feitos por Alma no café da manhã são visivelmente salientados pela edição de som, enquanto as reações de Reynold a esses sons demonstram seu incômodo classista, expõe sua inclinação a um certo tipo de educação nobiliárquica. Mas Alma nesse momento apenas está habilmente jogando o jogo de classe, e nesse ponto de vista, não está disposta a ceder e mudar de lado. A relação doentia está posta, está explicitada e apta a ser jogada por ambos os lados. A relação entre eles espelha a própria relação de Paul Thomas Anderson com o cinema, a de primar pelos mínimos detalhes em cada cena posta.
Mas no jogo da vida, inclusive nos cercados de refinamentos cotidianos e sistemáticos, sempre algo parece está prestes a ruir, ou ao menos balançar suas estruturas. Quando Reynold diz "Eu sou forte!", Alma duvida, afinal, todos somos potencialmente fracos e fortes e ela sabe disso. E Paul Thomas Anderson sabe como poucos trabalhar simbologias inesperadas. Em "Trama Fantasma" seu ardil é selvagem, vem em forma de um cogumelo. Esse será o elemento que irá abater, tornar indefeso, dócil e domesticado nosso herói aparentemente infalível. Dentro de uma ordem secular, de costumes polidos, porém decadentes, algo precisa urgentemente desmoronar, e a fúria da paciência insistente e inquieta pode sim, aos poucos, morosamente, ir dominando até ao mais exigente dos homens.
Visto no Estação Net Rio 5, no dia 28 de fevereiro de 2018.
Cotação: 5/5
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