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PROJETO FLÓRIDA - Direção Sean Baker

A Disney e seu avesso

Crítica de Marco Fialho

Tem filmes que começam engraçadinhos, quase despretensiosamente, como quem não quer nada. Só que a cada nova sequência tudo vai se avolumando até virar uma poderosa avalanche. Assim pode ser definido "Projeto Flórida", dirigido por Sean Baker, o mesmo diretor que antes assinou nada menos que "Tangerine", primeiro longa-metragem lançado comercialmente inteiramente realizado com câmeras de iphone. Nessa nova obra ele vem reafirmar seu talento para filmar personagens que se movimentam muito em cena. Tal como "Tangerine", Baker se entrega a uma personagem egressa de uma penitenciária, reafirmando a perspectiva dos excluídos e marginalizados pelo sistema. E ele o faz injetando em suas personagens uma dose de indignação profunda em relação a sua posição na sociedade.

O que vemos em "Projeto Flórida" é um sistema dedicado e competente em vigiar e punir, entretanto, contraditoriamente frágil na assistência e cuidado aos mais necessitados. Por meio de três personagens infantis, o diretor lentamente vai construindo o ambiente social injusto e desigual no filme. O que parece a princípio ações ingênuas das crianças, a cada nova cena nos assustamos com as atitudes, as reações, o palavreado, a coragem de viver e enfrentar as adversidades. Tudo acompanhado por uma câmera persecutória, sempre cúmplice das ações cada vez mais ácidas vindas dessas crianças. A principal dessas crianças é Moonee, com uma interpretação arrebatadora e vigorosa do talento mirim chamado Brooklynn Prince (melhor anotar esse nome). A cada aparição sua algo explode na cena e na tela. Vale destacar ainda a ousada Bria Vinaite, no papel de uma desprendida Halley, mãe da menininha Moonee. Incrível como é sempre um ponto forte do filme o encontro das duas em cena, uma funciona como espelho da outra, ambas são pura dinamite com suas línguas soltas e ferinas. William Dafoe também compõe o elenco, como um gerente da hospedagem tipo B onde todos moram. Ele consegue imprimir o tom certo para o personagem, que o tempo todo se equilibra entre as ordens e regras do patrão e pelo engajamento na luta pela sobrevivência das duas protagonistas.

"Projeto Flórida" explora exemplarmente a vida da periferia de quem habita ao lado dos parques da Disney, constrói as diferenças entre a imagem artificial, lúdica e feérica dos parques com a dureza de quem morando ao lado vive na maior dificuldade, de quem precisa se utilizar de pequenos trambiques e da prostituição para poder comer e pagar o aluguel de um quarto vagabundo. Mas o mais impactante é a forma pela qual Sean Baker oferece os contrastes desses mundos. Ele mostra que fantasia e destruição podem habitar um ao lado do outro, numa aparente convivência harmônica. O interessante é a sugestão do quanto desse mundo idílico (ou vendido como tal, formatado como um belo produto) traz consigo um entorno repleto de violências cotidianas.

Na minha ótica, não dá para dissociar a reflexão sobre esse filme do próprio papel que a Disney ocupa no mundo de hoje, como um poderoso conglomerado de comunicação, que ultimamente vem adquirindo outros gigantes do mundo do entretenimento e da informação, tal como a Marvel e a Fox. Talvez os óculos reveladores do filme "Eles Vivem" (1988), de John Carpenter, se utilizados hoje pudessem oferecer imagens ainda mais surpreendentes do que os da Era Reagan e poderíamos descobrir, sem grandes surpresas que os alienígenas invasores e dominadores adquirem a forma de um ratinho com uma aparência bem simpática. Sob esse ponto de vista, "Projeto Flórida" então podia até se chamar "Projeto Disney". 

Visto no Estação Net Rio 3, em 07 de março de 2018

Cotação:4/5           

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