
Elio e o mergulho no abismo
Crítica de Marco Fialho
Em uma propriedade não suntuosa, mas confortável e campestre no interior do norte da Itália vive uma pequena família (pai, mãe e o filho adolescente), com poucos funcionários, onde o pai é um pesquisador bem-sucedido e que todo verão recebe um aluno para ajudá-lo a organizar seu trabalho. Esse é o ambiente em que transcorre a história do filme "Me Chame pelo seu nome".
O filme transita na relação entre memória e tempo, entre o permitido e o interdito. Tudo podia ser um belo melodrama, mas felizmente não é assim que essa historia nos chega, nela predomina uma cuidadosa decupagem, uma sofisticação inequívoca na construção de todas as imagens do filme.
Tal como "A forma da água", de Guillermo Del Toro, "Me chame pelo seu nome" também é um filme sobre o amor, mais sobre a impossibilidade do amor entre dois homens em uma sociedade conservadora e que vive das aparências. Não podemos esquecer que durante um frugal passeio de bicicleta dos dois aparece abruptamente uma imagem de Mussolini, como se ela estivesse ali para lembrar o quanto ainda era conservadora aquela sociedade.
O amor entre Elio e Oliver se consubstancia pela distância, não só geográfica mas também física. E o primeiro indício que o diretor Luca Guadagnino nos evidencia isso acontece pela construção de sua misè-en-scene, na forma pela qual organiza a relação entre atores com o espaço cênico e o posicionamento da câmera nas cenas. Existe um jogo permanente na relação entre o primeiro plano e o que está posto na profundidade de campo, e os atores entram estrategicamente nesses enquadramentos, guardando entre si uma equidistância simétrica que muito diz sobre o momento da relação entre os dois personagens.
Mas é importante observar que durante todo o filme o que temos é o ponto de vista de Elio. Desde a chegada de Oliver na casa, o posicionamento zenital da câmera na janela de Elio nos mostra seu ângulo de visão para não restar dúvidas que são as sensações e olhar dele a nos guiar, pois são suas as memórias que estamos assistindo e o crédito no início, informando que estamos no verão de 1983 é preciso nessa revelação.
Como só temos informações sobre os sentimentos de Elio, o diretor nos coloca na mesma angústia dele, a da incerteza. Será que Oliver está correspondendo aos sinais emitidos por Elio? Como a atmosfera é de interdição tudo fica nebuloso. Os relacionamentos e os anseios são imprecisos, fugidios como o verão. Mas Luca Guadagnino sabe trabalhar o plano detalhe e as sutilezas dessa relação. O flerte acontece pela música, nos toques suaves dos corpos, quase despretensiosos e em sutis paqueras recíprocas perante os torsos nus na beira da piscina. O filme oscila entre um erotismo ora velado, implícito, ora quase explícito. Mas há também uma interdição na câmera, ela caminha sempre para o explícito, mas na hora h visivelmente foge dele, às vezes pelo movimento e às vezes pelo corte seco.
Todavia há uma relação muito evidente do ambiente com o erotismo. O contato com a natureza e o calor são elementos a serem considerados como propícios aos atos libidinosos e a proliferação dos desejos, eles ainda facilitam o desnudar dos corpos. E eles abundam no filme, os corpos estão elétricos, as meninas Marzia e Chiara estão à flor da pele. Impossível não lembrar da atmosfera dos filmes de férias do grande Eric Rohmer, como "Pauline na Praia", "Conto de Primavera" e "Joelho de Claire", marcados por encontros inesperados sob os auspícios da mãe natureza, um esteticismo da imagem e dos diálogos de uma burguesia bem instruída e poliglota.
Chama atenção o ecletismo da trilha musical, que transita harmonicamente entre o erudito, com composições de um Bach jovem, e a presença de uma bela seleção de música pop. A forma na qual a trilha é amarrada na trama é sempre sutil e estabelece um diálogo intenso com o todo, um exercício preciso de agregar sem tomar todo o espaço fílmico, ocupando-o na medida exata. Aliás, como nas relações humanas entre as personagens, a música também participa de um jogo lúdico onde rádio, livros e piano surgem para compor diversos sub-textos do filme. Destaque para a cena em que a mãe lê para Elio e o pai um conto francês sobre as angústias de um homem ao se declarar à amada. Ainda tem a declaração da jovem Marzia para Elio de que pessoas quem leem tendem a ser secretas. São exemplos de sutilezas que enriquecem a narrativa do filme e a composição dos personagens.
Há também em "Me chame pelo seu nome" uma alusão sistemática ao padrão clássico de beleza masculina. Logo nos créditos vemos as estátuas greco-romanas. No meio do filme, o pai de Elio faz um discurso sobre a perfeição dos corpos apolíneos. Oliver atende plenamente a essa demanda, ele é branco, louro, alto, de olhos azuis e as mulheres sempre tecem comentários apimentados sobre sua estampa. O filme fortalece então esse ponto de vista e reafirma uma estética calcada em padrões europeus. Por muitos momentos tudo aparenta ser um produto, como se um determinado estilo de vida, típico de uma burguesia soft, afeita ao casual, estivesse à venda. O short curto da Adidas, o sapato sport, os óculos rayban, o blusão sempre mais para aberto evidenciam uma construção de personagem que parece forjar algo que possa ser comercializado a qualquer momento, uma certa supervalorização do invólucro. Isso não tira o brilho dessa obra, mas a situa melhor em um determinado contexto sociocultural que já influenciou o mundo e que hoje soa mais como decadente.
Porém existe algo no filme que está muito para além da beleza de Oliver, e do esteticismo da obra como um todo, a atuação de Timothée Chalamet como Elio. A sua verdade e entrega saltam da tela de tão impressionante que é. E como o que acompanhamos é o seu ponto de vista, "Me chame pelo seu nome" carrega nessa atuação a sua força cênica salvadora. E a confirmação disso vem justamente na cena final, quando a câmera cola no rosto dele e somos cúmplices da sua dor. Guadagnino consegue criar uma imagem de rara beleza e significado nesse momento, ao contrapor simbolicamente a chama vermelha vinda da lareira, que reflete na face de Elio, ao ambiente contaminado pelo branco apático e gélido do inverno implacável. O mundo para Elio está totalmente congelado e quanto mais seus olhos se umidecem diante da certeza pela perda, proporcionalmente os nossos também. Esse é um tempo que não se consegue medir, é o tempo que parece durar uma eternidade. É um mergulho em um abismo, um tempo em que a beleza invade a memória para habitá-la ad eternum.
Visto no Estação Net Rio 3, no dia 15/02/2018.
4/5
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