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ACOSSADO - Direção Jean-Luc Godard




Esse texto foi escrito e publicado originalmente no catálogo da mostra "1959: o ano magico do cinema francês", em 2009, por ocasião dos 50 anos da Nouvelle Vague Francesa.

O chiste de Godard na narrativa clássica

Crítica de Marco Fialho

O filme de estreia de Godard é um dos mais analisados e festejados da história do cinema. E toda a celebração é proporcional ao grande impacto estético produzido por Acossado (A Bout de Souflle). Não à toa, tornou-se o maior símbolo da nascente Nouvelle Vague Francesa, assim como sua maior expressão. Se fizermos um balanço geral do muito já discorrido sobre o filme, teremos a sublinhar a supremacia irrefutável de uma ideia: o frescor artístico representado pelo filme para o cinema no final da década de 50 e início dos anos 60.

Todo o cinema antes de Acossado jamais conseguiu imprimir tamanho desprendimento artístico ao debochar não só do gênero humano, mas também do próprio fazer cinematográfico. Esse inclusive era um dos aspectos mais martelados pelos jovens críticos franceses, no qual Godard também pertencia, o da necessidade de realizar um novo cinema saturado de leveza, corajoso em subverter as regras clássicas, sem demonstrar medo em flertar com a ousadia. Por conter esses atributos, Acossado pode ser considerado o filme preferido da maioria dos cinéfilos em todo o mundo.

Mas Acossado não é só um filme de adoração por parte de cinéfilos, também foi, e ainda o é, idolatrado por cineastas. Sua influência teve uma abrangência em diversos países na Europa e na América, inclusive no Brasil. Glauber Rocha foi um desses cineastas fortemente impactado pelo filme, e isto fica evidente nos segundo e terceiro longas dele, Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963) e Terra em Transe (1967). Nota-se nos cortes abruptos (jump cuts) de Deus e o Diabo, principalmente na famosa cena final da morte do personagem de Othon Bastos (o cangaceiro) e na construção anárquica de Terra em Transe, explícitas referências ao filme de Godard.

Outro filme brasileiro marcado profundamente por Acossado foi O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla. Logo na cena de abertura vemos lá os letreiros de neón iguais ao do filme de Godard, letreiros de neon típicos da vida agitada da cidade. Os dois diretores não se contentam em utilizá-los apenas para caracterizar um processo de modernidade em curso em ambas as sociedades, preferem incluí-los como recurso narrativo. Ao invés dos letreiros de neon exibirem as usuais propagandas, mostram informações sobre os personagens.



A história de Acossado narra de forma fragmentada e anárquica a fuga da polícia do ladrão parisiense Michel Poiccard, em interpretação marcante e icônica de Jean-Paul Belmondo, após ter assassinado um policial, e seu encontro com a jovem americana Patrícia, vivida por Jean Seberg, transformada em cúmplice, e ao final do filme algoz, nessa perseguição inusitada, repleta de referências ao cinema clássico norte-americano, especialmente os famosos filmes noir.

Mas não devemos criar ilusões, o filme de estreia de Godard é pretensiosamente romântico, mas jamais ingênuo. Há toda uma construção cinematográfica no sentido de fazer do personagem de Belmondo um anti-herói, misto contraditório de carisma e mau-caratismo.

Dentre os elementos cinematográficos a montagem é o grande trunfo de Acossado. Nela o autor cria não só o ritmo, como também incorpora o principal do discurso: a irreverência aos padrões. Talvez esse seja o maior mérito do filme de estréia de Godard, conseguir forjar uma crítica totalizante ao questionar (ou será debochar?) em uma única tacada, os padrões estéticos, sociais, filosóficos e cinematográficos intrínsecos à época.

No transcorrer da projeção, "Acossado" provoca sistematicamente o espectador com cortes surpreendentes e agressivos (jump cuts), não usuais até então, que interferem e incomodam propositalmente o fluxo narrativo do filme. A opção de Godard é narrar uma história banal e corriqueira no cinema: a fuga de um ladrão da polícia. Mas pregou uma peça inusitada nos espectadores desavisados, interessados em uma diversão fugaz e convencional, uma história simples, mas inventiva e brincalhona com o padrão narrativo clássico.


Para Godard, o cinema só consegue despejar potência artística provocadora no espectador quando explicita durante o processo de fruição ser resultado de uma criação, uma manipulação realizada por um artista cioso em desnudar o processo cinematográfico, ao expor as escolhas de fotografia, ângulos, enquadramentos, e se propõe brincar com a ordem sequencial das cenas. Enfim, cabe ao diretor ser um articulador de um discurso advindo do controle dos elementos constitutivos da linguagem e tal como um demiurgo ser responsável pelas decisões e pela construção de um mundo à imagem e semelhança.

Analisado com os olhos de hoje, todas essas observações podem parecer até óbvias, mas em 1959 funcionaram como uma bomba no contexto cinematográfico. Com "Acossado", Godard instaura mais um divisor de águas na história do cinema, porque mais do que defender novas regras para o fazer cinematográfico, ele pretende “simplesmente” questioná-lo e desvendar a máscara do cinema clássico. Não bastava mais apenas exibir as cicatrizes expostas no rosto da narrativa clássica, mas também revelar como foram realizadas.

Quebrar as regras estabelecidas é uma das marcas indeléveis de Acossado. O desprendimento de Godard chega ao extremo quando o personagem de Belmondo vira-se para a câmera, isto é, para nós espectadores, e pergunta: “se você não gosta de mar, se você não gosta de montanha, se você não gosta da cidade, então vai se danar...”, sem dó nem piedade, por meio do personagem de Belmondo, Godard faz um discurso direto, em contrariedade a primeira regra básica do cinema clássico onde os atores jamais poderiam falar para a câmera. Para agravar o ato debochado e rebelde do diretor, o discurso é uma ofensa.

Após anos e anos, desde a criação dos códigos cinematográficos, o sagrado distanciamento entre o público e o autor de cinema é rompido, e assim, Godard propõe uma nova forma de aproximação com a plateia, não mais pelo viés da identificação entre personagem/público, tal como propunha a forma clássica, com o público torcendo pelo mocinho do filme, mas sim interrompendo o espetáculo cinematográfico ao comunicar para o espectador a existência de um processo de filmagem.

Ainda na mesma cena, o mesmo personagem realiza diversas ultrapassagens e Godard privilegia mostrar somente o momento exato da ocorrência delas, com um corte atrás do outro. Logo a seguir, ele mostra o carro da esquerda para a direita da tela, e ao cortar a cena, há uma inversão do eixo, onde a moto do policial foi filmada da direita para a esquerda. A manutenção do eixo da câmera foi um dos elementos básicos da montagem clássica no cinema, por favorecer a inteligibilidade do espectador e a melhor percepção do espaço.        

Um fato que deve ser atentado no filme é o próprio desenvolvimento do enredo. Se prestarmos atenção não há uma história, pelo menos no sentido clássico da palavra. As cenas são encadeadas uma a uma, sem que a trama ganhe realmente novos elementos. Durante o filme as imagens se sobrepõem, mas os diálogos são o elemento central da trama de Godard, como se o filme existisse apenas para comunicar uma série de pensamentos filosóficos, alguns debochados, intercalados sem necessariamente estarem conectados entre si.



O diretor também tratou Paris como um dos personagens do filme. Godard abusa de filmar as ruas, os transeuntes, muitas vezes pegos desprevenidos pela equipe de filmagem. Alguns esboçam olhares descarados para a câmera, outros a ignoram solenemente. Godard propõe uma relação diferente com a metrópole parisiense, a convida a dançar, a faz de parceira e coadjuvante, e por alguns momentos, até a eleva a protagonista, em travellings feitos de carros em movimento. Aliás, tudo em Acossado é movimento, a vida é sempre pulsante, mas vazia de utopias. O momento é valorizado insistentemente, inclusive numa provocante frase lida quase por acaso num muro parisiense:

“Viver perigosamente até o fim.”

Pode aparentar esta ser uma frase solta, mas não é. Ao contrário de muitas outras frases-opiniões dispersas ao longo do filme, esta nos chega por escrito, e confere um peso e um dado filosófico mais consistente. Quem já pode assistir a outros filmes de Godard sabe o quanto ele preza a palavra escrita, e como a utilizou em vários outros filmes. Esta provocante frase conclama os espectadores à subversão, de aproveitar a vida e ignorar as regras estabelecidas pela sociedade. Esse é o comportamento assumido pelos personagens em Acossado. Godard também o adota em relação ao seu cinema ao ridicularizar sistematicamente as regras clássicas do fazer cinematográfico. Não por acaso, ele escolhe partir de um formato clássico, o do filme noir, para poder subvertê-lo logo de cara, nos primeiros minutos do filme.

Em 1961, o importante fotógrafo e crítico da Folha de S. Paulo Benedito J. Duarte, finalizou a pequena mas contundente crítica sobre esse procedimento abusado de Godard em "Acossado":

“E tão cedo, certamente, não se verá de novo um filme em que a montagem, chocante por sua gratuidade, tão bem acompanhe, tão bem faça integrar, em sua dinâmica, os diálogos, o espírito, o comportamento das personagens (não raro com sua imagem fora do campo), uma dialética em geral pontuada por movimentos de câmera impossíveis, por travellings circulares ou retos, ora completos em seu trajeto, ora bruscamente interrompidos e, também aqui, nem sempre motivados. E os atores seguem perfeitamente essa linha sinuosa da criação cinematográfica de Godard, que sabe tirar deles um resultado que, afinal, está longe de ser gratuito nesse mosaico de imotivações. E isso é o que vale em cinema, ou em qualquer outra obra humana."

A imotivação e gratuidade estão presentes a todo o momento em Acossado, são inerentes a ele, como bem captou Benedito Duarte. Mas esse comportamento cinematográfico de Godard causa certo incômodo no espectador que não sabe exatamente se assiste a um aglomerado de citações, uma opinião, uma crítica ácida, uma provocação, ou se tudo não passa de um grande deboche aos mundos, tanto o cinematográfico quanto o social.


Um bom exemplo desse deboche é a relação Godard/americanos. Ele presta homenagem ao cinema americano, mas não deixa de registrar frases como “os americanos são uns imbecis em idolatrarem os franceses”. A frase é de uma dubiedade impressionante, ficamos sem saber com precisão quem são realmente os imbecis, se são os americanos ou os franceses, ou, se no fundo, o diretor queria atingir os dois. Para nós, a postura de Godard, antes de ser a do crítico contumaz, é a do iconoclasta.

Mas Godard constrói algumas cenas realmente admiráveis, como a da sequência final com Patrícia revelando a Michel Poiccard sobre seu desejo de romper o relacionamento, para depois andar pelo apartamento a falar acerca dos seus motivos, como se comunicasse o fato diretamente ao público, enquanto ele, paralelamente, fala em off, como se falasse consigo mesmo. Uma criativa ideia de construção de cena, para mostrar ao público a incomunicabilidade existente entre os personagens.

Durante o filme, Godard transmite sinais de um novo papel social da mulher na contemporânea sociedade francesa, como na última cena, na morte de Michel, quando é denunciado pela própria amante Patrícia que tranquilamente assiste a toda a cena, sem deixar de passar o dedo na boca à la Bogart logo após a morte dele, gesto no qual Michel repetiu diversas vezes durante todo o filme. A inversão não deixa dúvidas a respeito da mensagem delineada por Godard. A moderna Patrícia (uma norte-americana), nesse instante, representa a vitória de um novo tipo de mulher.



Acossado pode ser entendido como uma homenagem ao filme noir, no qual o homem passa a ser colocado em um papel de questionamento frente a sua superioridade em relação à mulher. Salienta-se o papel de vilania feminina, antes jamais aceita, não só pelo cinema quanto pela própria sociedade. Pode-se ponderar, nesse ponto, certa filiação essencial da personagem Patrícia ao universo feminino tal como estabelecido no filme noir, como bem assinala o autor Fernando Mascarello:

“Um dos temas mais recorrentes da história da arte, no noir, a femme fatale metaforiza, do ponto de vista masculino, a independentização alcançada pela mulher no momento histórico do pós-guerra.” *


Mas a mulher em Godard não é exatamente a mesma da representada pelo noir norte-americano. Nesse, a mulher é irresistivelmente fatal na sensualidade. Já Patrícia não, ela é independente, mas opta por um estilo casual, simples mesmo, não aceita uma relação mais estável com Michel e assume abertamente o assunto nas conversas com ele. Há no todo uma dissimulação no comportamento de Patrícia. Ele acredita em uma fuga romântica a dois para Itália, chega a falar em amor, enquanto ela, sem estar presa emocionalmente, prefere adotar uma postura mais tradicionalmente masculina, mostra-se fugidia, não querendo se prender afetivamente a Michel. Sem duvida, ela está no comando, até quando aparentava uma inferioridade.

A forma de Godard filmar os assassinatos também são um dos pontos altos do filme. O primeiro, o do policial de moto na fuga de Michel é uma clara homenagem à D. W. Griffith e Edward Porter, os inventores do close como plano narrativo. Mas Godard vai além, não só neste assassinato, mas em todos os outros, ele não exibe o tiro, apenas o ouvimos para logo depois assistirmos um corpo no chão.

O uso da música em Acossado também é digno de observação. A escolha do jazz clássico americano, gênero inventado e tocado pelos negros norte-americanos, gestado no “subterrâneo” dos bairros mais humildes nos Estados Unidos, estabelece uma relação entre o jazz e a americanização da sociedade francesa do pós-guerra. Enquanto o jazz é incorporado de forma não diegética no filme, a música clássica entra diegeticamente, com o personagem de Patrícia colocando na vitrola o concerto para clarinete de Mozart, enquanto Michel elogia escancaradamente a escolha da música. Essa será uma cena bem característica na filmografia de Godard, fazer comentários próprios pela boca dos personagens. O mais incrível entretanto, é ficarmos até algumas horas depois de assistirmos ao filme a repetir a marcante música tema, fato poucas vezes obtido no cinema.

Por seu desprendimento estético, Acossado pode ser apontado, tanto para o cinema narrativo quanto para o moderno como uma referência de criatividade para quem quer pensar o fazer cinematográfico. Antes de fornecer uma fórmula de como se realiza um filme, a obra de estreia de Godard serve mais de inspiração e coragem acerca das possibilidades ilimitadas na manipulação dos elementos constitutivos da linguagem do cinema, por isso uma obra-prima.

* Fernando Mascarello - História do Cinema Mundial, Papirus, São Paulo, SP. 

Cotação: 5/5







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