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A FORMA DA ÁGUA - Direção Guillermo Del Toro


A fábula bela e irriquieta de Del Toro

Crítica de Marco Fialho

"Que seu olhar se complete de um vazio possível. Sobre o que não é, se edifica o que é."

                                                                                                                     Alejandro Jodorowsky

"A Forma da Água" é um filme de monstro. Mas um filme de monstro dirigido por Guillermo Del Toro e esse detalhe diz muito sobre essa obra. Na minha opinião é o seu melhor filme desde o fenomenal "O Labirinto do Fauno". Del Toro mostra em "A Forma da Água" que é um importante esteta do gênero fantástico. Mais uma vez sua aposta recai em realizar uma fábula, todavia uma fábula moderna, adulta e consistentemente embasada na história, no caso, durante o período da Guerra Fria (1945-1989), onde Estados Unidos e União Soviética disputavam a primazia política para além do Planeta Terra, com projetos mirabolantes de conquista espacial.

Logo na cena inicial Del Toro demarca bem sua proposta estética, impondo uma fotografia esverdeada, um clima sombrio e noturno, que se prolonga até o final do filme. Completando a beleza da imagem a equipe de direção de arte esbanja atenção aos pequenos detalhes, nada passa desapercebido, nem a cor verde predominante de azulejos nem os dos diversos objetos de cena (posso citar a torta de limão verde e a bala verde do agente de polícia). Ressalto inclusive que o capricho no visual acontece no todo, desde o brilho fugaz e artificial do neon até a bela reconstrução das ruas de Baltimore dos anos 1950/60.

O mais interessante no trabalho de Del Toro é a maneira na qual ele elabora e amplia sua fábula. Junto com os fatores históricos são assimilados múltiplos outros elementos, que nos fazem renovar a todo instante nosso interesse no filme. As contradições da sociedade americana do pós-guerra são esmiuçadas a cada nova cena de "A Forma da Água". O racismo, o preconceito contra os latinos, negros, os subalternos em geral, assim como a inserção de novos produtos de consumo e bem-estar, caso bem exemplificado pela forma que se vende o Cadilac e a simbologia que o envolve como sinônimo status social, se misturam e fazem uma interessante reconstituição histórica. A casa do agente policial Strickland expressa com perfeição esse modelo, a começar pela escolha das cores com predomínio do laranja, vermelho e amarelo, representando o universo afeito às aparências, destoante dos outros ambientes, todos sombrios. O personagem mais soturno possui uma vidinha convencional, mulher, filhos, uma casa típica de uma classe média norte-americana da época. Assim, Del Toro cria um contraste entre a aparência construída e o horror das práticas sociais que sustentam esse mundo "cor de rosa" e hipócrita.

É muito difícil pensar em "A Forma da Água" sem sua peça mais crucial e intensa, a inebriante e maravilhosa personagem Eliza (Sally Hawkins), uma mulher simples, solitária e deslocada das relações sociais aviltantes as quais está sujeita, em especial no mundo do trabalho. Empregada em um laboratório de experimentações científicas, ela se apaixona pelo ser mais improvável, a criatura monstruosa vinda da exótica região amazônica. O filme, assim, pode ser lido como uma metáfora acerca do sentido do afeto e da possibilidade de aceitação da diferença. A criatura representa um convívio com um ser que a princípio repugnamos, por não ser um nosso igual, por não ser nosso espelho. O agente Strickland o tortura, o violenta de todas as formas. Afinal, quem é o monstro? A necessidade de se destruir a alteridade torna-se uma chave para acessar as entranhas dessa obra. Não casualmente, os personagens citam os russos, os judeus, os negros, todos sempre hierarquizados como inferiores, como algo a ser eliminado, uma ameaça social. Definitivamente, Del Toro não acredita nos poderosos, sua crença parece estar nos fragilizados, os nadas, como bem diz o vizinho de Eliza a certa altura do filme. O Diretor estende francamente sua solidariedade aos que são tratados como párias sociais. 
A forma com que Del Toro circunda o amor nos tocou bem no fundo, pois ele o faz com uma beleza única, especial. As cenas de Eliza com a criatura são todas altamente sensuais e é ela que nos induz a afeiçoar à criatura. É incrível como tudo transpira poesia quando Eliza está com a criatura. A primeira cena de sexo é algo deslumbrante e comovente. Del Toro nos prova que a descoberta do amor tem facetas surpreendentes e insuperáveis de dignidade, respeito e encantamento. A mudez de Eliza salienta sua dificuldade de trato social e desenvolve uma interiorização, uma sensibilidade de aceitar os renegados. Não à toa tem uma cena emocionante quando ela descreve como o monstro a vê, o que nos faz refletir que a nossa forma de ver e se relacionar com o outro é o central dessa "A Forma da Água". Dali em diante temos a certeza: se há um monstro nessa história, ele está entre os humanos. Del Toro desloca, em sua construção, a imagem do monstro ao nos induzir a pensar sobre o que é então ser um monstro?       

Desde as primeiras sequências, Del Toro nos informa que Eliza mora em cima de um cinema. A câmera muda de cenário passeando de um patamar a outro, trata os cenários como camadas e essa postura e tratamento da câmera não deve passar em branco. Ao mesmo tempo que Del Toro explora as contradições da sociedade também consegue promover uma viagem no próprio gênero do cinema fantástico e suas possibilidades narrativas. Ele transita entre o filme de monstro, que mistura o terror e a ficção-científica e o típico filme romântico e musical, nos manipulando de tal forma que de repente estamos torcendo pelo sucesso de um relacionamento improvável entre uma moça fisicamente muito frágil e um monstro, e achando tudo perfeitamente aceitável. Mas a presença da TV também é uma constante no filme, e é incrível como ela consegue dialogar a um só tempo com o imaginário da época e contribui para impregnar a narrativa de poesia. A cena em que Eliza dança (sapateia) com o vizinho é encantadora, de uma leveza impressionante. Em "A Forma da Água", Del Toro mostra maturidade e parece não ter medo de arriscar no inusitado dos personagens, nas suas loucuras e sonhos. Incorpora o estranho e o estranhamento sem pudor, nos propõe entretenimento e reflexão ao mesmo tempo, o que enche a plateia de entusiasmo e esperança na humanidade, ou pelo menos em alguns de seus pares.
Mas três cenas merecem destaque e comentários especiais:
1) A cena da dança de Eliza com o monstro dentro de um musical em preto e branco. Essa cena além de transcendente desmonta por completo a ideia do monstro como mal e o humaniza em um sentido mágico, o dos filmes musicais.
2) Logo após um encontro com o monstro, Eliza brinca com gotas d'águas e Del Toro transforma esse simples brincar em um espetáculo extasiante, que basicamente funciona como uma expressão do estado de espírito dela, de pura felicidade.
3) Uma das cenas mais simbólicas do filme. Eliza transforma seu banheiro em um mini-oceano, numa cena de sexo epifânica, de uma declaração de amor infinita, que beira o absurdo. Há um simbolismo extremo nessa cena, pois a água do banheiro transborda para todos os lados, inclusive para o cinema embaixo deles, até que o vizinho arromba a porta do banheiro e a água transforma-se em uma grande metáfora da ejeculação, do prazer sem limites. Notoriamente, algo de supremo e sublime acontece e está na face dos dois amantes.

"A Forma da Água" é um desses filmes que mergulha no amor, que estabelece lastros profundos da humanidade com esse sentimento maior. E Del Toro nos expõe o amor em terrenos aparentemente avesso e o faz acontecer por caminhos frugais, mesmos que esses pareçam em alguns momentos serem inusitados. Eliza oferece ao monstro um ovo, depois mais outros, oferece sua mão e depois tudo. Talvez seja isso que todos precisemos, de um simples carinho e de uma entrega incondicional ao outro. O diretor nos mostra que por mais artificial que seja o mundo com seus neons, suas relações superficiais e hierarquizações opressoras, resta algo verdadeiro a ser descoberto, mas antes precisamos nos libertar de nossos preconceitos e buscar no outro o melhor que ele pode nos oferecer: sua diferença.             

Filme visto no Cinema Reserva Cultural de Niterói, em 03/02/2018. 

Cotação: 4 e meio/5         




Comentários

  1. Nossa, fiquei com muita vontade de assistir. Parece muito bom! Obrigada.

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  2. Arrasou! Já vi filme e sua crítica só veio somar mais beleza!

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  3. é maravilhoso!!! Amei
    o filme e sua crítica

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