
Personagem ousada em narrativa quadrada
Crítica de Marco Fialho
O que mais nos impele a continuar seguindo "Lou" até o fim é a incrível história dessa personagem fascinante, revolucionária e atualíssima chamada Lou Salomé, uma filósofa e pensadora inquieta. Suas atitudes e ideias conseguem soar emancipatórias tanto na sua época (final do Século 19 e início do 20) quanto hoje. Não à toa essa mulher impressionou homens extraordinários como Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e Rainer Maria Rilke. Pena que o pensamento de Lou não seja muito explorado pela diretora Cordula Kablitz-Post, que privilegia nitidamente mais suas posturas como mulher do que como pensadora.
Por conta disso, o ponto alto de "Lou" é justamente seu elenco. O maior destaque fica a cargo da atriz Katharina Lorenz, que interpreta Lou na fase adulta. Sua atuação, além de convencer, faz com que nós espectadores consigamos acompanhar a sua trajetória. Merece destaque também o trabalho da atriz Nicole Heesters, que representa Lou mais idosa. Ao todo, quatro atrizes fazem o papel de Lou em diferentes épocas de sua vida.
Mas as qualidades do filme se encerram nesses pontos já citados. Infelizmente todo o aspecto de transgressão da personagem se perde em meio a uma narrativa que não acompanha a ousadia demonstrada e construída para Lou. A estética de Cordula escorrega feio ao ser sustentada por uma narrativa batida, já pisada e repisada em outros tantos filmes que tem como proposta também realizar uma cinebiografia. A fotografia de "Lou" (Robert Elswit) apela para uma padronização da imagem dita de época e soa como cópia de tantos outros filmes que se passam no mesmo período histórico. A preguiçosa trilha musical colabora para uma sensação protocolar, baseada por sonolentas músicas guiadas por um piano pouco criativo que guia nossas emoções para um lugar-comum, como se a música estivesse ali apenas para reforçar algo que a imagem já nos diz. Ao piano é acrescida em momentos pontuais de maior carga dramática, uma orquestra assentada igualmente em previsíveis violinos, que vem para acentuar o que já estava evidente pelas imagens. Os movimentos de câmera também não ajudam. A utilização de câmeras na mão pouco funciona dramaticamente e não acrescenta muito ao personagem, pois frisa suas ações e enfraquece seu pensamento. O contemplativo perde espaço para o movimento excessivo que usado repetidamente torna-se vazio. Alguns movimentos chegam a chamar mais atenção do que está sendo narrado.
Por outro lado, a montagem faz uso abusivo de flashbacks para que a personagem de Lou mais idosa possa rememorar para um biógrafo fatos de sua vida. Mas várias passagens temporais são efetivadas por meio de fotos antigas, que servem para nos situar também no espaço, já que o filme se passa em alguns países diferentes. Mas esse artifício das fotos postas no filme como se fossem postais fixos animados apenas pelos atores, se repetem tanto que cansam narrativamente e viram um artifício deveras inócuo.
A verdade é que a força dessa mulher fantástica, sedutora e militante na vida e nas ideias aos poucos vai perdendo sua potência, em especial graças às opções narrativas e estéticas da diretora, que vai embrulhando todo um rico conteúdo em uma forma por demais convencional, engessada, quadrada e sem ousadia no uso dos meios cinematográficos.
Cordula trabalha a questão sexual em Lou Salomé de uma forma a retirar sua imensa potencialidade. Ela não consegue amarrar bem as suas ações com as suas ideias, porque afinal ter ideias era algo não esperado das mulheres naquele período histórico. Por isso essa era a grande oportunidade desperdiçada pela diretora. Ao privilegiar a conduta de Lou ao invés de seu pensar, ela empobrece sua personagem. A negação de Lou ao casamento e ao próprio sexo durante um período de sua vida eram por demais revolucionários por estarem fortemente vinculados com as ideias que a pensadora vinha desenvolvendo. Do jeito que está no filme ideias e condutas não ficam bem alinhavadas, tirando muito da força fílmica dessa obra. Há de registrar que a inserção de grandes nomes do pensamento parece acontecer para legitimar o talento de Lou, como se a aprovação dela dependesse do aval deles, todos homens brancos e reconhecidos socialmente como pensadores. Todavia o que o filme nos mostra é o interesse mais sexual do que de pensamento. O que definitivamente é uma decepção.
No todo, a impressão que "Lou" nos deixa como obra artística é morna e dramaticamente esvaziada, apesar de ter uma super personagem nas mãos. O filme tematiza a transgressão de uma mulher incomum, muito à frente de seu tempo e que ignorava conscientemente as convenções sociais cerceadoras da vida feminina ao final do Século 19. Uma mulher que enfrentou de frente e com ações afirmativas, valores que impediam sua autonomia e liberdade. E esse é um ponto de vista que faz com que "Lou" mereça ser visto, pois a força da personagem se impõe em alguns momentos sobre a fraqueza das escolhas artísticas de Cordula.
Mas ao final fica uma pergunta: como narrar uma vida revolucionária envolta por tantas ideias cinematográficas arcaicas? Há aí um visível desencontro e um choque entre princípios narrativos e a escolha da personagem. A impressão é de que enquanto a personagem vai para um lado a forma cinematográfica vai para um outro. A conclusão que fica é uma só, de que o cinema ainda está devendo uma obra à altura da grandeza de Lou Salomé.
Visto no Estação Barra Point 1, em 14 de janeiro de 2018.
Cotação: 2/5
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