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ARÁBIA - Direção de Afonso Uchôa e João Dumans

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O cinema como matéria do existir

Crítica de Marco Fialho

Há muito tempo um filme não me mobilizava tanto quanto "Arábia". O que passa à nossa frente é de grande impacto, uma profusão de sentimentos e de encontros. E é justamente por meio de um encontro inusitado e casual entre um rapaz e um caderno repleto de anotações que somos apresentados a um personagem. Curiosamente já havíamos visto esse personagem, mas ele parece apenas nascer para nós a partir da leitura de seus pensamentos, ou melhor, a partir da sua fabulação sobre a sua vida, como se a nossa parca existência precisasse desse processo de autofabulação para poder existir. E  isso para mim é o que mais fascina em "Arábia", fazer necessário o próprio existir do cinema por meio da nossa memória, como bem diz nosso Cristiano o que fica é a nossa lembrança de tudo que vivemos. E devido a isso essa obra nos soa tão pulsante, pois ela nos fala fundamentalmente do cinema, do seu processo para existir, da necessidade de existir pela reflexão sobre tudo que nos cerca, sobre o caráter profundamente individualizado das vivências, por mais coletiva que elas sejam. A faceta inexorável da solidão humana, do desamparo que tentamos em vão escapar.

Durante a projeção de Arábia, inevitavelmente fui me lembrando de Eduardo Coutinho. Esse diretor tão importante para o nosso cinema, que buscou desenvolver esse impulso da fabulação humana, de fazer seus personagens existirem a partir desse processo de autoconhecimento. Assim, por meio desse dispositivo ele funda de forma seminal um sentido existencial vigoroso, resgatando histórias vindas de pessoas comuns, aparentemente sem brilho ou importância. Se há algo que nos seduz em "Arábia" é a sua capacidade de defender essa fabulação. Quando Cristiano fabula sobre a sua vida ele parece começar a existir como indivíduo, o que faz com que esse dispositivo de torne algo determinante para a complexidade do filme, pois esse existir fica vinculado ao se pensar sobre ele. Não podemos esquecer que Cristiano é um homem comum, um ser invisibilizado pelo sistema, saído da prisão, um ser adulto em busca de entender o mundo que lhe mostra ser hostil, um mundo que aos seus olhos se vislumbra como caótico.

Não à toa o diretor Uchôa tem um pé no documentário. Ao manter o dispositivo da autofabulação nessa ficção ele cria um diálogo com o mestre Coutinho que tanto "brincou" em seus últimos filmes com as fronteiras entre o documentário e a ficção. E algo que muito me chamou atenção durante a projeção foi o comportamento da câmera. Os diretores a posicionam quase sempre de maneira observacional, como se ela estivesse ali para registrar, mas sem atrapalhar a narração de Cristiano. Existe em "Arábia" deliberadamente uma postura de subserviência dos meios sobre o personagem e esse elemento, ou artifício,  traz uma potência imensa para o filme. Mas se há um elemento constitutivo marcante em "Arábia" esse é o da trilha musical. A música literalmente embala o filme, ela entra para sempre falar do todo, do aspecto espiritual impregnante. Destaco aqui especialmente a música "Raízes", de Renato Teixeira. Ela vem e diz muito sobre o protagonista Cristiano, de sua relação com a vida e de sua tentativa de acertar, tendo que aproveitar cada novo ciclo de renovação do dia para renascer e buscar incessantemente ser feliz a cada novo encontro que a vida lhe oferta. Quem quiser entender melhor o que digo deixo aqui o link para essa linda música e observe bem a construção poética do refrão, afinal a canção diz "o novo amanhece". https://youtu.be/u2ktvV9iX1o

Todavia se a postura da câmera não permite uma aproximação com o personagem, muito pelo contrário nos impõe distanciamentos, a voz off do personagem nos arremessa em uma feroz intimidade e cumplicidade. Há um certo hipnotismo nesse narrar e na ordem do confessional. Não podemos esquecer que não há um consentimento de Cristiano, apesar da voz ser a dele, a leitura não, é a do rapaz Andre. Ouvimos tudo então como algo proibido. Nos engajamos em uma certa relação pecaminosa, como se não soubéssemos realmente se teríamos uma autorização para saber sobre aqueles sentimentos tão íntimos. Há uma relação dúbia nossa como espectador, pois a narrativa instaura um jogo que nos deixa sempre entre o próximo e o distante, no qual a plenitude jamais nos é dada.

No início do texto mencionei que "Arábia" fala de encontros. Claro que de encontros fundamentalmente de um personagem com o mundo, de sua peregrinação por ele, mas o que mais fica dessa obra é o seu encontro consigo mesmo e do seu desencontro com o mundo. O filme parece habitar então nessas fronteiras, no entrecruzar nosso com o mundo, no nosso tatear sobre ele, nas tentativas de inserção nele. Cristiano é um andarilho, mas os diretores Uchôa e Dumans parecem querer ir além dos filmes de estrada, ir além da experiência. Me fica a impressão de que há um desejo no personagem de se fixar em algum lugar, que sua odisseia não é uma escolha sua, que ele não é arredio ao movimento vital, mas o mundo sim tal como está organizado é que se impõe como adverso. Apesar de viver nas periferias, a presença do mundo civilizatório se mostra sempre com sua marca opressora e propiciador de desencontros. Interessante como o universo fabril se faz personagem, e mostrando sempre sua faceta destrutiva, caso do venenoso pó a poluir a vida de quem mora em seu entorno. São essas sutilezas, que aparecem quase que simbolicamente, apenas como imagem, que vão agregando à narrativa um peso, pois há uma criação desse universo no qual o personagem está inserido. E o título do filme nos surge nesse contexto de falar do mundo por meio de uma fabulação, e nada mais propício de que ela nos chegue através de uma piada. A metáfora civilizatória, ou a do seu engodo, vem da infinita ambição dos poderosos, que conseguem transformar o vazio do deserto em algum projeto de ocupação predatória.

Mas "Arábia" merece um mergulho bem maior do que esse que aqui realizo no calor da hora, nessa loucura de assistir filmes espremidos entre outros filmes. Mas não gostaria de encerrar minhas impressões sem salientar algo que me seduziu sobremaneira nessa obra, quando o personagem Cristiano fala de seu melhor momento na vida ao conhecer a operária Ana. O amor entra tão sutil e sorrateiramente na trama que podemos até esquecer dele. Mas ao meu ver não podemos. Ao valorizar tanto os encontros, e eles são vários, esse filme dignifica o existir por meio do amor. Do amor à Ana, mas não só. O amor pelo sujeito, pelo indivíduo comum que pode e está ao meu lado, porque "Arábia" existe em todos nós, afinal ele me traz a ideia de que de certa forma todos somos um pouco Cristiano e encerraremos nossos dias aqui na profunda solidão para qual estamos destinados. E a existência do amor e dos encontros são os únicos lastros que podemos deixar como marca indelével.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes, na Cine Tenda, no dia 20 de janeiro de 2018.

Cotação: 4 e meio/5




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