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RODA GIGANTE - Direção de Woody Allen

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AS CAMADAS DA ILUSÃO  

Crítica de Marco Fialho

"Estou sempre e sempre tentando interpretar a Vida em termos de vidas, não apenas vidas em termos de caráter. Mantenho-me sempre muito consciente da Força que está por trás de tudo – Destino, Deus, nosso passado biológico criando nosso presente, não importando o nome que se dê a isso – Mistério, com certeza – e da eterna tragédia do Homem em sua luta gloriosa, autodestrutiva para fazer com que essa Força dê expressão a ele, em vez de fazer que seja apenas, como um animal, um incidente infinitesimal da expressão dessa Força." 
                                                                                Eugène O'Neill


Depois de uma vasta carreira de sucesso com quase 50 filmes no currículo e mantendo a realização de um filme por ano, Woody Allen vem nos últimos tempos sendo sistematicamente cobrado por críticos de todo o mundo de reproduzir uma mesma fórmula a cada novo trabalho que lança nos cinemas. Com seu novo filme, "Roda Gigante", não está sendo diferente. Mas considero esse filme um dos grandes de Woody Allen, onde apesar dele manter alguns aspectos narrativos parecidos com suas últimas obras, possui traços distintivos que o coloca em um outro patamar na sua recente carreira.

Um dos diferenciais desse novo filme de Allen são as camadas existentes em cada cena, e não me recordo de ter visto essa correlação de elementos cinematográficos de forma tão intensa em outras obras recentes do diretor, e não falo das citações, sempre abundantes e recorrentes em toda a sua carreira, mas vislumbro esses traços em especial na construção imagética mesmo do filme, toda pensada em suas minúcias. Fotografia, cenografia, figurino, movimentos e enquadramentos de câmera, tipologia de personagens, somados a diálogos e trilha musical que por vezes sugerem ou entregam a ambiguidade dos personagens. O enredo parece nesse caso específico de "Roda Gigante" ser um chão, necessário, mas a sua serventia é permitir que os vôos experimentais de Allen possam decolar e ele realiza tudo com tamanha leveza que é capaz até de muitos sequer perceberem essa sua estratégia dramatúrgica.

Fiquei tentado a começar essa análise das camadas pelo elemento mais chamativo dela, o fotográfico, entretanto, iniciarei com um aspecto mais visível de todos, porém pouco notado habitualmente, a cenografia. A escolha de realizar o filme em um parque de diversões foi exemplar, e uma das mais cruciais para o seu êxito como obra, afinal esse cenário serve tanto como metáfora dos personagens como para o próprio cinema. Nesse ponto, o título escolhido para o Brasil e Portugal, retira algo de simbólico presente no título original, "Wonder Wheel", que se aproximaria mais de "Roda da Ilusão".

Mas utilizar um parque de diversões como pano de fundo se configura como uma estratégia dramatúrgica brilhante, porque Allen tem como protagonistas Humpty, um trabalhador que faz a manutenção do Carrossel, personagem interpretado por James Belushi, e a garçonete amargurada, e ex-atriz frustrada, Ginny, com uma atuação impecável de Kate Winslet. Allen reforça o trágico de sua história ao acentuar a cada cena essa dicotomia entre realidade e fantasia. A decisão sábia de retratar dois personagens populares, simples, como protagonistas não é algo muito comum na sua filmografia recente, entretanto são perfeitos para seu projeto de trabalhar o contraste entre ter sonhos e encarar a dureza do cotidiano. Allen mostra como a casa dentro do parque de diversões é um inferno para quem ali vive. O cotejo entre viver em volta da luminosidade ilusória do espaço e a miséria sem fim do dia a dia explode a cada nova cena e renova nosso desejo de continuar seguindo o filme. Vale lembrar o papel lúdico e glamoroso que esses parques representavam na década de 1950, e que Allen lentamente vai desconstruindo com sua "Roda Gigante". O parque de diversões também me remeteu diretamente ao filmes iniciais do expressionismo alemão, em especial os caligaristas, onde eles expressavam o lado vertiginoso e caótico daquele conturbado momento histórico pré-hitlerista.   

A fotografia então entra para ressaltar os conflitos que vão sendo apresentados pelo enredo. Não à toa o tom artificial que o tempo todo nos atinge pela proposta visual reforça bem a ideia de que algo está fora do lugar. Fácil entender a escolha do mestre Vittorio Storaro, rei do artificialismo, criador de universos visuais estilizados e exagerados, como "O Fundo do Coração" (1982), de Francis Ford Copolla, e "Dick Tracy" (1990), de Warren Beatty. Storaro brinca com a ideia dicotômica do roteiro e cria uma luz que mescla em sua paleta de cores, no mesmo plano, o azul e o laranja, como se incorporasse dia e noite, ou sonho e realidade. E o faz como mais uma camada contraditória ao enredo, da imagem contradizendo deliberadamente o texto. O próprio cabelo de Ginny é alaranjado, essa personagem que carrega em si um vibrante lado feérico escondido e que empenha todas as suas forças contra a vida medíocre que tem, em um exercício puramente ardiloso de Allen, visivelmente mais atento aos detalhes nessa do que em outras de suas obras recentes.

Ainda pela fotografia, Allen e Storaro (infelizmente não temos como precisar quando é um ou o outro) nos ofertam belas cenas onde o espetáculo é gritantemente interrompido (para usar aqui o termo cunhado por Robert Stam) para se desferir um violento golpe no artificialismo dominante. Com a luz eles nos fazem refletir acerca do poder ilusório do próprio cinema quando na mesma cena alteram a luz artificial por uma terrivelmente naturalista, como se o mundo do nada perdesse seu filtro ilusório. E o mais chocante é que eles nos presenteiam assim justamente no instante em que a protagonista parece estar muito próxima de concretizar seus sonhos românticos. Essas cenas são um luxo só, um preciosismo narrativo e um virtuosismo técnico impressionantes, sem dúvida, um dos pontos altos dessa nova obra de Allen. 

Esse é o grande achado dessa "Roda Gigante", a de nos incitar a ver o que está por trás, o de retirar o véu ilusório do mundo, do quanto ele pode nos influenciar sub-repticiamente, pelas nossas fraquezas e culpas. Enfim, o mundo para além do visível, o mundo dos processos onde vidas são construídas e desconstruídas permanentemente por valores exógenos, que sequer perguntamos na maioria das vezes, se servem para nos tornarmos seres mais harmoniosos ou não? Os parques de diversões por princípio e natureza precisam de muitas luzes, sempre coloridas e atrativas. A sociedade contemporânea é baseada nesse fascínio pela luz, nos trouxe um novo e sedutor paradigma da iluminação, a da iluminação dos objetos, de trazer à materialidade uma sacralidade e um encantamento até então irrealizável. E Allen resgata essa ideia amarrando-a a personagens simples, pois a mágica que faz girar o sistema capitalista permeia a todos, indistintamente, pobres e ricos, e torna cada pessoa independente de suas posses, única. Essa é a sua lógica ilusória maior, a que tudo rege e domina implacavelmente.             

Por isso, não casualmente, Allen homenageia abertamente o dramaturgo Eugène O'Neill, pinçando dele ideias filosóficas que sustentam o todo fílmico. Primeiramente com citações explícitas, mas não se contenta só com elas. O diretor também tece plano a plano essa influência, o incorpora espiritualmente ao pensar essa tragédia com as aspirações ilusórias dos seus personagens, pois a realidade acontece através do contato, ou do litígio, entre a vida como ela é e a que projetamos para ela. Por isso mesmo, Ginny, a personagem de Winslet, é a condutora de toda a trama. Ela, uma bonita e infeliz garçonete que chega aos 40 anos em plena crise, que sente na pele sua juventude se esvair vertiginosamente, numa sociedade da década de 1950 que pouco se preocupava com o futuro das mulheres. Não casualmente os planos próximos do filme são quase todos dela, assim como seu surto final é um dos ápices de sua atuação, quando os seus sonhos desmoronam e lhe resta apenas a velha, desgastada e insossa vida com seu marido. Ginny representa muito bem a mulher desse tempo retratado no filme, as mulheres que estão em profunda transformação, da mudança ocorrida no mercado de trabalho do pós-guerra, onde elas ajudam no equilíbrio financeiro do lar, entretanto mantendo os padrões pequenos-burgueses opressores que as delegavam ainda integralmente as funções domésticas.

Como em todo o filme de Allen, não faltam cenas que por si já valiam por todo o filme. Vou exemplificar com apenas uma delas. A maneira pela qual ele insere o cartaz do filme "Winchester '73" (1950), clássico dirigido por Anthony Mann. Ele aparece logo após um encontro que traria uma discórdia e um conflito irreversíveis na tecitura do filme. Ele anuncia sim a tragédia, mas o faz com uma sutileza cinematográfica precisa e dentro da lógica alinhavada até então, de confrontar mais uma vez ilusão e os fatos cruéis reservados para o futuro próximo. Allen mais uma vez faz a magia do cinema encontrar com a ilusão que precisamos ter para tocar nossas vidas cotidianas miseráveis.

Mas deixei para o fim o istmo dessa obra. O elemento mais Woody Allen de todos, o que mais o caracteriza em toda a carreira, seu lado inconformista e iconoclasta, neste filme representado pelo filho de Ginny, o menino Richie, muito bem interpretado por Jack Gore. No princípio o vemos como um menino levado, todavia, ele se revela um piromaníaco de primeira e queima tudo que vê pela frente. Mas ele não está de todo errado, põe fogo na escola, no consultório da psicóloga, enfim o garoto vai muito alem de ser apenas um menino infernal. Convenhamos que nada mais Allen do que isso. Mas o que quero mesmo destacar é o fato de Richie ser o verdadeiro alter ego de Allen no filme e não o narrador galanteador (interpretado pelo astro pop Justin Timberlake). E essa é a maior e deliciosa subversão estilística dele nesse filme, nos falsear seu alter ego. E isso fica óbvio quando vai se explicitando a paixão dele pelo cinema, a única que conseguimos detectar na personalidade de Richie inclusive. Assim, Allen une rebeldia e cinema de uma forma simples e eficaz. O menino incendiário que aos 82 anos continua aquecendo nossas vidas.

Agora só falta mesmo esperar o tão aguardado e prometido filme de Allen passado no Rio de Janeiro. Pelo menos é o que ele sugere quando faz menção ao filme de 1933, "Voando para o Rio". Será apenas mais uma piada sua, ou será que Allen já está rascunhando mesmo o roteiro e aguçando suas ilusões, e em paralelo inflando igualmente as nossas?  

Visto no Kinoplex Tijuca 4, em 28 de dezembro de 2017. 

4 e meio/5

Comentários

  1. Realmente camadas trabalhadas nos filmes, muitas vezes, nos passam despercebidas. Acho que vou passar a assistir os filmes após a leitura da crítica neste espaço. Ou, talvez melhor, vê-los de novo. Quando assisti "Roda" fiquei um pouco também com a impressão de que Woody Allen repetia aspectos narrativos utilizados em várias outras obras, em um filme em que, talvez, fosse importante que estes aspectos não estivessem tão presentes. Mesmo com o trabalho trazendo inovações, eu fiquei me perguntando se, neste filme, Allen tivesse se aproximado mais do tipo de narrativa que utilizou em "Match Point", não teria um resultado ainda melhor do que obteve. Tenho a impressão de em "Match" ele assumiu, na narrativa, a tragicidade do roteiro. "Roda" parece ter aquela leveza - mesmo que aparente - de seus diversos outros filmes. Acredito que "Match" não tinha nem mesmo essa aparência.
    À genialidade citada na utilização das luzes e das cores eu acrescentaria um viés também sensual, relacionado ao desejo de Ginny pelo guarda vidas. Li, em um jornal, uma crítica que relacionava situações do filme a "Um bonde chamado desejo". Não sei se cabe essa relação. As atitudes da personagem me remeteram mais a "Gata em telhado de zinco quente", que por sinal é do mesmo autor.
    Mas Woody Allen continua nos co(movendo). E a crítica do Marco expandiu bastante minha compreensão do filme.

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