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UMA JOVEM MULHER - Direção de Léonor Serraille

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O ritmo avassalador de uma jovem mulher

Crítica de Marco Fialho

Um dos aspectos mais fascinantes de “Uma Jovem Mulher”, filme francês dirigido por Léonor Serraillle é a cumplicidade e a afetividade com a qual ela constrói a sua protagonista Paula (Laetitia Dosch). Claro que a interpretação de Laetitia é de uma entrega descomunal e não há uma cena do filme que ela não esteja. A câmera cola nela e só tem interesse em perscrutá-la, invadi-la e nos mostrar todas as suas contradições. Ela tem uma cicatriz na testa, uma marca física e simbólica de quem encara a vida de frente, mas de quem também apanha bastante dela. O mais interessante é que em nenhum momento a diretora se aproxima de Paula para nos convencer a afeiçoar dela e criar com ela uma identificação. Pelo contrário, logo na primeira cena tendemos a achá-la desequilibrada, mal-educada e gratuitamente agressiva. 

Não criemos ilusão. Não há em "Uma Jovem Mulher" uma predominância do tempo sobre as ações, como ao estilo dos irmãos Dardenne, mas sim há aqui a prevalência das ações sobre o tempo. Os irmãos trabalham incansavelmente o tempo nas ações de seus personagens enquanto Serraille privilegia a ação deles no tempo. É uma mudança cinematográfica fundamental de eixo conceitual. 

E são justamente as ações incongruentes pertencentes à personalidade de Paula que nos faz querer acompanhar essa história até o fim. Inclusive a narrativa desse filme nos soa impressionante, a diretora Léonor Serraille consegue imprimir um ritmo avassalador, não há barrigas ou pontas a serem amarradas, em especial porque ela deixa evidente, desde a primeira cena, de que é Paula quem lhe interessa e que todo o restante vai girar em torno dela.

Assim somos convidados a ver o mundo apenas a partir de seu ponto de vista. Em nenhum momento temos outros. Serraille habilmente vai no decorrer do filme costurando vários temas pertinentes à França dos nossos dias. A imigração, o racismo, as relações familiares, de trabalho, de amizade, o casamento, além de tocar em temas como a do desemprego e a da crise habitacional. Tanto os conflitos sociais mais amplos quanto os mais interpessoais cotidianos surgem constantemente na trama, sem esquecer da questão da incomunicabilidade e todas as dificuldades advindas desse processo de pauperização das relações humanas.

Mas a parte que gostaria de destacar em especial aqui seria a do trabalho. O filme aborda bem a coisificação dos funcionários, todos flutuantes ou temporários, porém todos sempre descartáveis. Ainda tem a fiscalização absurda e inclemente dos horários destinados às refeições, com rádios cobrando impertinentemente o retorno ao trabalho, uma exploração abusiva da mão de obra, que nos cheira a mais um sinal de retrocesso aos direitos trabalhistas, nesses tempos em que vivemos um processo de globalização capitalista perverso, com a primazia das grandes marcas e das corporações financeiras. 

E contra tudo e todos se encontra Paula, essa mulher de trinta anos, destemperada, verdadeira, que precisa amadurecer a fórceps, encarando esse mundo adverso, pouco afeito aos afetos. Ao mesmo tempo, Paula encontra-se no auge de sua juventude, ou seria o seu ocaso? O título do filme sugere obviamente a juventude, mas ao assisti-lo ficamos com uma pulga atrás da orelha. Talvez a intenção da diretora fosse criar uma dúvida, ou querer nos indagar o que é, ou como é ser jovem nesse mundo selvagem de hoje. Talvez por isso vemos uma mulher lutando desenfreadamente pela sua sobrevivência, como aliás fazemos todos nós adultos independente da nossa idade. O mundo exige de Paula estudos, currículos, serenidade, controle emocional, mas ela está mais no esquema "quero viver minha vida sem amarras". O mundo enrola ela, mas a recíproca também é verdadeira. Por isso Paula apanha de todos os lados, estabelece conflitos com as regras que lhe impõem limites, incluindo aí sua mãe, que não consegue aceitá-la como ela é.       

“Uma Jovem Mulher” pode até não ser um filme para ingressar nas listas dos melhores do ano, pois não traz inovações de nenhuma espécie, mas com certeza possui atrativos narrativos suficientes para despertar nossa atenção de cinéfilos. Sua maior qualidade está na sua proposta bem realizada de ser um estudo de personagem estupendo, intenso, atual, reflexivo, que exibe as nuances contraditórias e as difíceis relações que Paula trava com o mundo caótico e atormentado a sua volta. Léonor Serraille joga às claras suas intenções e esse é um mérito seu ao realizar sua obra. É sobre um indivíduo contra um mundo hostil e mais que isso, "Uma mulher jovem" é um filme sobre uma mulher, filmado por uma mulher e que pretende nos mostrar a França de hoje sob a sua ótica, com unhas e dentes. Uma obra que vale a pena ser vista e discutida.

Visto no Espaço Itaú de Cinema 5, no dia 26 de dezembro de 2017.

Cotação: 3/5

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