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LUCKY - Direção de John Carroll Lynch




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O esplendor de Harry Dean Stanton

Crítica de Marco Fialho
  
Impossível propor uma reflexão de “Lucky” que não se relacione com a figura de Harry Dean Stanton. Sua presença por si ilumina a tela. E parece que o diretor John Carrol Lynch (que é também ator) tinha total consciência disso ao realizar o filme. Podemos dizer mesmo que é um filme-homenagem a Stanton. E ele não decepciona, esbanja um talento extraordinário e nos diverte imensamente ao brilhar em todas as cenas. Como é recompensador vê-lo em cena, seu estar à vontade a todo o momento. Se alguém ainda tinha, ou tem, dúvidas sobre sua capacidade cênica basta assistir “Lucky” para ser forçado a mudar de opinião a respeito desse profissional tão pouco reconhecido pela indústria, que muitas vezes lhe reservou papéis secundários e menores nos filmes.

As primeiras cenas do filme retratam a rotina disciplinada de Lucky, montadas com uma precisão de tempo impecável, com cortes impressionantes, que imprimem um ritmo exato para cada quadro que assistimos. Se no todo os planos podem parecer pouco ousados isso é totalmente compreensível, afinal aqui a forma fílmica não deve se sobrepor ao personagem e tão pouco ao ator, esse sim estrela maior desta deliciosa obra. “Lucky” tem o tempo e o ritmo certos, não tem as famosas barrigas que vulgarmente encontramos nos filmes. É preciso, tem tiradas e diálogos sensacionais, bem-humorados e que Stanton consegue extrair sempre o máximo. Todos os planos do filme são pensados pela presença de Stanton. A filosofia do filme vem dele. A forma contraditória com que ele define o que é o “realismo” como o modo que as coisas se sustentam em uma determinada realidade, mas que é alterado pelo ponto de vista de quem vê, esta sim sintetiza forma e conteúdo no filme. E essa visão muito diz sobre a relação entre o mundo e os sujeitos, reafirma a maneira como a geração de Stanton enfrentou as agruras de suas vidas.

Mas quem pensa que “Lucky” funciona só como um pretexto para o exibicionismo de um ator experiente de 90 anos no final de sua vida, comete ao meu ver um crasso equívoco. O tema do fim da vida assume a primazia no decorrer do filme. Aí fica impossível não relacioná-la com o próprio processo de vida do homem Harry Dean Stanton, em especial porque ele viria a falecer pouco tempo depois, ficando assim “Lucky” como um de seus trabalhos derradeiros (ainda existe um outro filme dele em pós-produção). E como cai como uma luva a Stanton a constatação de que seu personagem está no fim de sua vida. O inconformismo de Lucky em relação à morte é apaixonante, tocante e engraçado. A finitude não é fácil mesmo de se admitir, mesmo sendo ela a única certeza que nós humanos carregamos enquanto ainda estamos por aqui. E Stanton consegue explodir com toda a potência e verdade essa indignação do homem perante essa certeza.

Claro que a participação de David Lynch como Howard também merece menção. Para quem curtiu suas aparições na nova temporada de “Twin Peaks” já não causa tanto espanto, mas certamente é sempre muito bom tê-lo também à frente das câmeras. E seu personagem Howard traz para a trama elementos simbólicos interessantes sobre o tema da finitude da vida, ao procurar um advogado para fazer um inventário em favor de seu cágado, que provavelmente ainda estará vivo após a sua morte. Não à toa o cágado abre e fecha o filme, com o seu passo lento, como um porta-voz do tempo, que mesmo arrastado avança com sua inexorabilidade.

A paisagem é um outro destaque de “Lucky”, portanto, é impossível não ligar “Lucky” a “Paris, Texas” (Win Wenders), o maior sucesso de Stanton como ator. Em especial pelo ambiente, que é uma visível inspiração, assim como o próprio chapéu usado por Stanton... é inevitável não lembrar. Mas como um todo, a relação do personagem com a pequena cidade é muito bem trabalhada pelo diretor. A interação com esse espaço e seus personagens, a cafeteria, a loja de conveniência e o bar estão ali para nos lembrar da importância deles para a vida. Pessoas e lugares são os que permitem nossa permanência no mundo, garantem os laços que fazem a vida fluir. Desses laços nasce uma das cenas mais comoventes do filme, a que Lucky canta uma música mexicana tradicional. É de arrepiar. 

Harry Dean Stanton merecia fechar sua bela e inusitada carreira com uma homenagem desse porte. E John Carrol Lynch logo em seu primeiro filme como diretor realizou a proeza de conferir mais um grau de dignidade para a carreira desse ator tão especial que foi Harry Dean Stanton. A sorte expressa no nome de seu personagem, na verdade, fica para quem assistir esse maravilhoso e encantador “Lucky”.

Visto no Estação Net 2, no dia 09 de dezembro de 2017.

Cotação: 4/5

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