Pular para o conteúdo principal

CORPO E ALMA - Direção de Ildiko Enyedi


O vermelho definitivamente é a cor mais quente

Crítica de Marco Fialho

Raros são os filmes húngaros a aterrissarem aqui pelas nossas bandas. A tal globalização só serviu para propagar uma cultura mainstream e afastar a comunicação entre as culturas e suas diferenças. Mas felizmente “Corpo e Alma”, dirigido com precisão por Ildiko Enyedi, vem para quebrar com essa cortina de ferro dos blockbusters. A motivação para esse inesperado pouso dessa nave húngara é consequência direta de um grande prêmio. O filme foi agraciado com a maior honraria possível, o  Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim.

“Corpo e Alma” deve ser o filme mais duro e também o mais terno e lírico deste ano, e essa difícil conciliação é um dos atributos que mais nos atrai nesse drama inusitado, passado em um abatedouro na Hungria. O enfoque inicial no trabalho do abatedouro é de difícil digestão e para pessoas com estômagos fortes. Entretanto toda a aspereza que vemos nessas cenas não são gratuitas, pois o abate traduz uma simbologia para além dos animais, nos atinge em cheio. Seremos nós também abatidos em nossa indiferença, aceitação e passividade frente às relações que nos foram vendidas desde à infância?

Mas o encanto desse filme está para além de seus personagens, está na forma como a diretora Enyedi amarra indivíduo e formação social deles. Os nossos dois protagonistas, Mária (Alexandra Borbély) e Endre (Morcsányi Géza) carregam um peso imenso de seus passados, ele com seus amores infelizes e ela com a ausência de amor e uma incapacidade total para sequer viver um. Enyedi nos mostra como que magia na medida certa não faz mal à narrativa cinematográfica. Mária e Endre são espelhos, um é corpo e o outro é alma, mas seus sonhos são os mesmos, possuem a mesma paisagem e os mesmos personagens, como se eles compartilhassem juntos um arquivo em uma nuvem na internet.

As escolhas narrativas de Enyedi muito contribuem para o êxito do filme. A câmera não só escolhe os ângulos e enquadramentos corretos como também documenta com frieza e pouco movimento as ações, ela não rouba a cena dos personagens, pelo contrário, dá a cada um deles a oportunidade de conduzirem a história. A diretora conduz nosso olhar muitas vezes pelo olhar dos dois protagonistas, que insinuam e direcionam os planos detalhes que abundam durante o filme. Podemos dizer que os olhares protagonizam “Corpo e Alma”. São detalhes preciosos, que muitas vezes substituem diálogos inteiros, são recursos cinematográficos e narrativos fundamentais que demonstram o controle que Enyedi tem sobre o seu trabalho.     .  

Os dois protagonistas são carregados de incompletudes. Fica a impressão de que podem tomar atitudes as mais surpreendentes, e essa estratégia os humaniza e nos faz querer saber mais deles, e tentar entendê-los melhor a cada cena. Mas há um afeto tão transbordante por esses personagens que nos faz superar todas as cenas áridas que esse filme nos traz.

Mas o vermelho invade insistentemente a tela, ele nos afronta em abundância. Como sangue ele jorra pelos corpos dos bois abatidos assim como pelo corpo humano infeliz com a vida. Ele revela a banalidade da vida de todos os seres, colore o chão, mancha a nossa existência com sua nódoa. Enyedi sabe que a vida é realizada nos detalhes e que no meio da opressão de nosso cotidiano paira o amor, mesmo que esse nos soe tão difícil, improvável e aterrador quanto um sangue derramado. "Corpo e Alma" é um dos filmes imperdíveis de 2017. 

Visto no Estação Net Botafogo, no dia 23 de dezembro de 2017.  

Cotação: 4/5

Comentários

  1. Prezado Marco, seu texto é de extrema sensibilidade, captando com precisão a sutileza presente tanto na direção, como nas atuações, além da "atmosfera" proporcionada pelo roteiro, que une o "real" ao "onírico". Entre tantas tão precisas observações, destaco três, que mais me tocaram:
    "toda a aspereza que vemos nessas cenas não são gratuitas, pois o abate traduz uma simbologia para além dos animais, nos atinge em cheio"...
    "há um afeto tão transbordante por esses personagens que nos faz superar todas as cenas áridas que esse filme nos traz"...
    "Enyede sabe que a vida é realizada nos detalhes e que no meio da opressão de nosso cotidiano paira o amor, mesmo que esse nos soe tão difícil, improvável e aterrador quanto um sangue derramado"...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado Raul pela sua devolutiva, é sempre revigorante ouvir as impressões de quem nos lê. Esse é um daqueles filmes especiais que infelizmente chegam pouco por aqui, mas que sempre nos enchem de energia e esperança de que o cinema é uma arte cheia de possibilidades narrativas e estéticas. Um abraço!!

      Excluir

Postar um comentário

Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...