A história que se esvai
Crítica de Marco Fialho
“Vazante” é o primeiro filme solo de Daniela Thomas. Depois de parcerias com Walter Salles em “Terra Estrangeira”, “Primeiro Dia” e “Linha de Passe”, e com Felipe Hirsch em “Ensolação”, ela discute dois temas atualíssimos, em um momento em que o debate hipócrita teima em jogá-los para debaixo do tapete, o da opressão à mulher e o dos negros escravizados no Brasil.
A polêmica envolvendo o filme durante o Festival de Brasília, a essa altura, já é bastante conhecida em vídeos disponíveis na internet e em debates, entrevistas, matérias em revistas, redes sociais, enfim, está mais do que evidenciada. E ela é muito importante para a própria sanidade do país, pois esses são temas que devem ser tratados como de primeira ordem mesmo, e o cinema é um dos meios mais apropriados para trazer e levantar discussões relevantes da nossa história. “Vazante” tem esse mérito, o de possibilitar debates hoje prementes e inadiáveis.
Vamos então ao filme em si. A primeira questão que gostaria de abordar é em relação aos dois temas que o filme trabalha, e mais precisamente, como a diretora os posiciona na própria construção narrativa da obra. Há uma exposição bem clara, a de um primeiro plano relativo à opressão histórica da mulher e a de um segundo plano, com os negros escravizados por uma elite branca.
Segundo depoimento de Daniela Thomas a história do filme, roteirizada por ela e Beto Amaral, tem como inspiração uma situação ocorrida em sua própria família no começo do século 20, e na qual seu pai sempre conta, de um antepassado de cinquenta anos que se casou com uma menina de 12 anos, que sequer tinha ainda menstruado. Fica então a pergunta: para que retirar a história de sua época original e deslocá-la para quase cem anos antes, mais exatamente para 1821, nos estertores do período colonial brasileiro? Porque inserir essa mesma trama em uma época com características tão diferentes historicamente entre si?
Ao fazer esse deslocamento Daniela situa a opressão sobre a mulher em um contexto onde sua história original teria que se adaptar às outras formas de opressão, só que ela o faz de maneira a reafirmar o silenciamento dos homens e mulheres escravizados. Um exemplo bem evidente é a da ausência no filme dos quilombolas, em uma época em que eles já eram uma realidade inconteste, uma forma de resistência efetiva dentro do sistema escravista. A resistência no filme se limita a uma ação individual de um escravo, que fica descontextualizada, como se ele fosse apenas um revoltado isolado e de conduta despropositadamente agressiva. Nos créditos finais, mais de dez comunidades quilombolas recebem agradecimento, mas no filme mesmo elas não aparecem, estão invisibilizadas.
Como então falar da opressão feminina da sinhazinha e esquecer da opressão da jovem negra escravizada? Se a opressão da personagem de Beatriz (interpretada belamente por Luana Nastas), branca, senhora, já era atroz, o que dizer então da opressão de Feliciana (presença marcante de Jai Baptista), negra, escravizada, e praticamente sem voz. E o personagem do liberto Jeremias, capataz da fazenda? A construção de seu personagem é frágil ao extremo, ele aparece e desaparece com total desenvoltura no enredo, e ficamos sem saber ao certo nada dele, fora que suas aparições pouco acrescentam acerca de sua subjetividade, seus anseios e pretensões. É um ser flutuante na história, tanto que sequer sabemos qual o seu paradeiro ao final da história.
Narrativamente, Daniela opta por fazer um filme descritivo, com poucos diálogos, com muitas trocas de olhares, que mais sugerem do que explicitam as relações, o que é uma opção narrativa, não um problema em si. Porém, a história principal é toda a dos brancos/senhores, sendo a menina Beatriz e o tropeiro Antonio os protagonistas incontestes. Os negros se situam no fundo da história, como contexto, o que nos leva a indagar: como tratar de um período tão violento para os negros, e não dar-lhes uma voz, nenhum sinal de resistência, e mais, desgarrando a trama do contexto, ao invés de imiscuí-los efetivamente. Tal como está no filme, escravidão é posta como moldura, não como partícipe efetivo do processo. Sem voz alguma, o contexto se esvazia, se despotencializa. E o mesmo acontece com a própria trama principal, que também se vislumbra inócua, como se apenas essa dor se estabelecesse como sujeito da história. Assim, “Vazante” parece elevar ao máximo de potência a dor do opressor, como por exemplo na hora do parto do filho do Senhor Antônio. A câmera se coloca à reboque de suas impressões, angústias e sentimentos. Por isso, considero fundamental se refletir sobre a decupagem da cena final, e de qual ponto de vista acompanhamos a conclusão da obra.
Assistindo a “Vazante” lembrava insistentemente de “Joaquim”, filme de Marcelo Gomes, realizado ano passado, contemporâneo de produção e de época retratada, e fiquei imaginando diferenças abissais entre essas duas abordagens. Mesmo em se tratando de um personagem icônico como é o de Tiradentes para o país, Marcelo inclui como protagonista a personagem escravizada que ele chamava pejorativamente de Preta. Mas ao contrário de Daniela, Marcelo lhe dá voz, ela reage, foge para o quilombola e não permite mais ser usada como um objeto de prazer para os brancos. Evidente que cada filme é um filme, cada um tem prerrogativas, propostas estéticas e narrativas próprias, mas é certo que cada obra se afirma socialmente pela postura política que assume frente aos temas que enfrenta. Hoje no Brasil temos vários historiadores competentes e especializados no tema da escravidão. Mary del Priore, a escolhida por Daniela para realizar a consultoria histórica do filme, não pode ser vista propriamente como uma especialista do tema.
Como cinema, “Vazante” mostra qualidades técnicas e narrativas indiscutíveis. Daniela Thomas realiza uma obra impecável nessa perspectiva e reafirma seu valor como cineasta. A fotografia de Inti Briones é esteticamente primorosa, assim como a direção de arte de Valdy Lopes Jr.. Só que um filme vai muito além de suas questões meramente técnicas e “Vazante” é exemplar para se pensar o que é o cinema e a quem ele serve ou pode servir.
Visto no Estação Net Rio 5, em 10 de novembro de 2017.
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