Pular para o conteúdo principal

O OUTRO LADO DA ESPERANÇA - Direção Aki Kaurismaki



O cinismo como estratégia de humor e de afronta aos poderosos

Crítica de Marco Fialho

A cada filme que realiza, o diretor finlandês Aki Kaurismaki mostra que é bem mais do que uma mera promessa vinda de um país distante e frio. Com boas obras no seu currículo, como “O Homem Sem Passado” (2001) e “O Porto” (2011), a maturidade artística parece ter sido alcançada nessa curiosa comédia social que é “O Outro Lado da Esperança” (2017). E Kaurismaki não é daqueles diretores dos mais produtivos, pelo contrário, seu ritmo tende mais para o sabático do que para uma engrenagem acelerada do tipo fordista.

O leitmotiv desse seu novo filme, assim como em “O Porto”, também envolve o tema da imigração ilegal. Se antes a trama se passava na França e o refugiado era um menino africano, agora tudo se passa na própria Finlândia e o refugiado é um homem sírio, que foge da guerra genocida que atualmente grassa por lá. Mas ao invés de construir uma narrativa pesada, onde a denúncia pese toneladas, Kaurismaki prefere adotar a comédia como gênero, mas o tom desse humor passa longe do pastelão, ele é seco, de uma maneira tão potente que funciona de forma a nos provocar uma risada inevitavelmente escancarada.

O que impressiona neste novo trabalho de Kaurismaki é a sua força na direção dos atores. O diretor se concentra visivelmente nos seus corpos, de como eles estão colocados em cena, suas posições em relação ao espaço. Também não neglicencia cada gesto enunciado, eles não são gratuitos nem evocados pelos próprios atores, eles atendem a uma preocupação dramatúrgica clara, que nos encaminha para a comédia. Não são os diálogos apenas que nos convidam ao riso, mas sim os corpos situados precisamente na misé-en-scene e pela sua escolha acertada da posição da câmera, assim quanto aos enquadramentos propostos pelo diretor.

Outro elemento que facilita a proposta cômica de Kaurismaki é a forma com que ele adota a sobriedade. Basta reparar a maneira pela qual ele se utiliza das cores pastéis e cinzas para criar uma atmosfera muito austera que quando afrontadas pelo inusitado potencializa a ideia de humor. Mas a sobriedade é tão somente o seu caminho para reconstrução da realidade. Já no âmbito das relações humanas, o diretor prefere investir na solidariedade e na crença da esperança do encontro entre os homens, apesar de realizar tudo da forma mais seca possível.

O tom de contido deboche, na verdade, traduz um flagrante cinismo do diretor e tem um alvo específico: o processo de globalização típico do nosso tempo, que instaura guerras sangrentas que alijam diversos setores da sociedade de seu lugar de origem e os arremessam ao Deus dará.

Kaurismaki é preciso em sua crítica a esse modelo econômico-social tão excludente e perverso, que tornam os governos nacionais e suas máquinas administrativas, burocráticas e de repressão inoperantes, devido ao enorme grau de impessoalidade que esse sistema impõe ao cotidiano das pessoas.

Como é prazeroso ver o cinema assumir uma postura crítica a tudo isso e ser tão contundente ao ridicularizar processos dados como necessários, “civilizatórios”, inevitáveis e voltados para o “bem-estar” da maioria, quando na verdade apenas servem aos interesses de meia dúzia de poderosos.

Visto no Estação Net Rio 3, no dia 10 de novembro de 2017.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...