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NO INTENSO AGORA - Direção de João Moreira Salles


“Nem sempre sabemos o que filmamos”


Crítica de Marco Fialho

A coragem e a ousadia talvez sejam a maior virtude do talentoso João Moreira Salles. A coragem, em especial, nos caminhos e estratégias escolhidos para seus projetos. Quem duvida basta ver “Notícias de uma Guerra Particular”, “Nelson Freire” e sua obra máxima, o surpreendente “Santiago”. Em “No Intenso Agora” não é diferente. João embrenha-se em um projeto cheio de desafios e camadas de sentido. O fato do filme ser prazeroso de ser visto não deve ser confundido com a complexidade de leitura que a obra exige.  


Logo no início do filme ouvimos a frase “nem sempre sabemos o que filmamos”. Essa é a sentença e o mote que João perseguirá durante os 129 minutos de seu novo trabalho. E isso tudo não é gratuito, já que ele se utilizará somente de imagens de arquivo para poder desenvolver sua ideia acerca da natureza de quem filma. Mais uma vez João Moreira Salles nos entrega uma verdadeira teoria da imagem com seu “No Intenso Agora”. Basicamente quatro países são evocados, quatro realidades bem distintas unidas por projetos e lutas que envolviam um emaranhado sem fim de utopias. Apesar dos lugares serem tão díspares, afinal um fica no Oriente (sobretudo China, pois o Japão nos chega em imagens fugidias), um outro na Europa Central (Paris), outro ainda na Europa Oriental (Tchecoslováquia) e um outro que somos nós aqui no Brasil, em plena América do Sul, o período é um só, os eventos políticos que convulsionaram em torno das jornadas do 1° de maio de 1968.  


Apesar de invocar essa parafernália de imagens, o ponto de partida é o vídeo feito por sua mãe em sua encantadora viagem à China. Na verdade, essas são as imagens mais próximas que ele tem em suas mãos. Não são suas, é certo, mas de certa forma são, pois trazem um grau de afetividade inquestionável. O seu prazer de mostrá-las é tão intenso que elas são repetidas mais de uma vez no decorrer do filme, como se essa repetição pudesse mais do que evocar aquele momento nos fizesse imergir naquele tempo, naquele movimento de corpos que estão ali projetados. Na narração que João faz ele também frisa diversas vezes que era o momento mais feliz da vida de sua mãe.              


Mas para provar a sua tese central de que "nem sempre sabemos o que estamos filmando", João resgata uma das poucas imagens que vemos do Brasil, a de uma família rica passeando por uma rua. Analisa a imagem e mostra como que ao começar a rodar o filme a babá da família se afasta, como se não pertencesse aquele mundo, mas sua imagem fica lá presente ao fundo, demarcando bem sua posição naquele núcleo familiar. Mais uma vez João demonstra sua preocupação com as distâncias sociais que o cinema inconscientemente reafirma, até quando sua pretensão é amadora, retomando o tema já discutido antes em Santiago, quando filmava o mordomo que serviu a vida toda à família Salles. Mas em "No Intenso Agora", o Brasil acaba ficando em um plano bem secundário no enredo. Além dessa imagem citada logo acima, nosso país aparece apenas quando João trata de vários enterros de líderes do maio de 1968 mundo afora, onde mostra a mobilização ocorrida após a morte do estudante Edson Luis e mais nada do nosso Brasil.  


Mas o “nem sempre sabemos o que filmamos” talvez revele algo sobre o próprio método de João. Curiosamente, ele resgata no filme um dos momentos mais complexos da história, se pensarmos que o ano de 1968 foi intenso em diversos países, não só nos quatro que ele escolheu retratar. Não sabemos bem durante o filme o porquê da escolha desses países. Assim nasce novamente uma desconfiança ao seu método, na medida em que ao retratar todas essas realidades o que prevalece é sempre um tom melancólico e trágico dos acontecimentos. Mas será realmente justo essa ideia levantada por ele e reafirmada insistentemente pela própria trilha musical do filme? Ver 1968 apenas pelo prisma da tomada de poder pode ser reducionista ao extremo, afinal essa foi talvez a época em que o ser humano mais obteve conquistas sociais e comportamentais na história. E as jornadas de maio tão somente sinalizavam essas rupturas. As mulheres, por exemplo, tiveram um importante momento de afirmação de seus direitos na ocasião, os negros ampliaram nos Estados Unidos os seus direitos civis, os homossexuais ficaram conhecidos pela Libertação Gay. Enfim, várias conquistas estão relacionadas a essa época. A não tomada do poder não significou uma derrota em si dessa geração, as vitórias foram a partir dali ecoadas e ampliadas nos anos seguintes.Infelizmente, só agora esses avanços estão sendo violentamente contestados por correntes conservadoras, como ocorreu recentemente no caso da palestra da socióloga Judith Butler, no Sesc Pompeia, em São Paulo, nesse nosso intenso agora.


Do ponto de vista narrativo, o próprio João Moreira Salles se encarrega de fazer não só a narração, mas também os comentários de cada imagem que nos é exibida. Esse procedimento soa estranho, como se sua fala esgotasse tudo o que pode ser dito sobre aquelas imagens. João faz tudo isso de maneira tão ciosa, que instaurou em mim uma desconfiança, não exatamente das ideias ali proferidas, mas sim acerca do seu proceder, de sua postura de hierarquizar o que vemos. E aquela frase dita lá no começo do filme: “nem sempre sabemos o que filmamos” está dita ali mais sobre os amadores que ligam despretensiosamente suas câmeras caseiras apenas para registrar o cotidiano. Mas quando o diretor escolhe a icônica imagem da saída da fábrica dos Irmãos Lumière, essa frase adquire uma outra dimensão, se expande, pois ela não é apenas uma imagem caseira, ela tem um significado simbólico na própria história do cinema, ela representa um poder múltiplo que esse aparato trazia para a humanidade, sua imagem como duplo, como permanência, como registro do momento, da vida, mas também da morte, como um fantasma que agora paira sobre nós. No caso de “No Intenso Agora”, essa imagem soa como uma reafirmação da tese “nem sempre sabemos o que filmamos”. Pelo jeito, nem os Irmãos Lumière sabiam, nem sua mãe sabia, e talvez, nem o próprio João saiba.

Visto no Espaço Itaú de Cinema, em 12 de novembro de 2017

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