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MARIA: NÃO ESQUEÇA QUE EU VENHO DOS TRÓPICOS - Direção de Francisco C. Martins e Elisa Gomes

A força da beleza e da fúria de Maria Martins

Crítica de Marco Fialho

Tem filmes que nos mostram com precisão como somos relapsos com a nossa memória, em especial a que envolve os nossos artistas. “Maria” é um desses casos exemplares. E depois de assistir ao filme esse é o pensamento que vem imediatamente à cabeça: como nunca havíamos realmente dado o devido valor a essa impressionante artista e escultora chamada Maria Martins. Uma mulher brasileira e fantástica, que foi influenciada, e depois influenciou a vanguarda artística europeia, brasileira e norte-americana. Saí da sala de cinema ainda pensando em como o cinema proporciona momentos tão transformadores e possibilita não só o resgate de nomes esquecidos, mas também tem o poder de recolocar determinados artistas em um lugar que lhes são de direito.

Só por isso, o filme “Maria”, dirigido por Francisco C. Martins e Elisa Gomes, já teria um papel de destaque na atual filmografia brasileira. Mas os seus acertos não param por aí, a narrativa foi pensada de forma a descortinar uma passagem misteriosa e desconhecida na biografia de Maria Martins, onde ela teve um relacionamento secreto com o maior ícone da arte moderna Marcel Duchamp. Essa opção fica evidente quando muito do que é revelado no filme passa pelas cartas deixadas por ambos. Os diretores escolheram dois atores para fazerem as leituras. O que soa como diferente nessa proposta é que ouvimos as vozes em off, mas em muitas das cenas também vemos as imagens dos atores lendo as cartas, com elas em punho, um de frente para o outro, como se estivessem em uma mesa de leitura de roteiro. Esse dispositivo empregado, de expor as leituras, pode soar estranho para alguns, mas funciona bastante no plano narrativo, ao deixar transparecer que são atores interpretando as vozes de cada um dos personagens. Essa explicitação do artificialismo do ato de filmá-los confere uma grande dignidade à obra e a coloca no patamar exato do que ela é, um filme que optou por realizar uma narração de personagens já mortos, mas que deixaram como testemunho cartas que foram trocadas entre eles.

Nos créditos do filme, podemos confirmar o cuidado que a produção de “Maria” teve com a pesquisa, o quanto de arquivos foram visitados. E essa massa de conteúdos dão um peso inquestionável à obra, pois fica muito evidente a quantidade de informações que os diretores acumularam para fazer o filme. Outro acerto da direção é o de convidar poucos entrevistados, mas as escolhas foram todas feitas com precisão, caso por exemplo de  Paulo Herkenhoff, crítico de arte com domínio amplo sobre o trabalho da escultora e das artes visuais no Brasil, que nas falas consegue sempre intervir com considerações pertinentes.

No mais, é importante frisar, o quanto o filme é feliz e competente em traduzir esse furacão silencioso chamado Maria Martins e a sua arte marcante, repleta de beleza, erotismo e fúria. Mais do que uma feminista de discurso, ela o foi de fato em sua vida, mesmo que de forma subterrânea, ao viver uma história incomum e improvável de amor com o grande Marcel Duchamp, que a admirava como mulher e artista. Mas o filme mostra como ela soube se aproveitar do casamento com um embaixador para se aproximar de grandes artistas e galerias pelo mundo. Outro destaque é a participação dela na construção de Brasília, no ousado projeto do Museu de Arte Moderna (MAM-RJ) e na 1ª Bienal de São Paulo.

Quanto à obra de Maria Martins em si, os diretores conseguem mostrar várias delas, o que nos deixa sempre estupefatos enquanto espectadores, admirados e boquiabertos pela beleza carnal das obras, nos colocam como legítimos voyeurs da materialidade dos corpos erotizados, perpassados muitas vezes pela presença de uma dose de violência nos rostos desfigurados, pela distorção dos membros superiores e inferiores de suas esculturas. Há na obra de Maria uma deformidade extremamente humanizada, ou se preferir, uma humanização de corpos que visivelmente são invadidos pela brutalidade oriundas de relações opressoras, que em última instância expressam e moldam trabalho dela como escultora. Era classificada como surrealista, mas o filme ajuda a redimensionar a sua obra, em não deixar que a fechemos em uma única caixinha que explicaria a complexidade da sua arte.  

O filme também procura mostrar o quanto Maria Martins marcou profundamente a carreira de Duchamp, o quanto ela inspirou obras dele e o quanto ele morreu de saudades dela devido à imposibilidade imposta pela distância geográfica. E essa foi a sensação que senti quando saí da sala de cinema. A de uma saudade precoce da curta viagem que fiz a um universo tão fascinante que envolve essa artista fora do comum chamada Maria Martins.

Filme visto no Estação Botafogo 2, no dia 25/11/2017.

Comentários

  1. Marcos , de fato, até onde fui em Conversas, a Arte ainda está em dívida com Maria Martins. O filme consegue contar, com sucesso, o quanto da virulência da vida da artista -pulsão de morte-, está presente na obra de Maria. Sexualidade, morte. Maria, Duchamp.

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    Respostas
    1. Infelizmente o Brasil não trata bem seus artistas. Por isso, filmes como esse são fundamentais para trazer à luz nossos talentos desconhecidos.
      Adriana, obrigado pelo comentário!

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