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GABRIEL E A MONTANHA Direção de Fellipe Barbosa



A nossa viagem com Gabriel


Crítica de Marco Fialho

Logo na primeira cena de "Gabriel e a Montanha” já sabemos que o nosso protagonista morreu. Na verdade, antes mesmo de entrarmos na sala essa informação já estava dada. E esse procedimento revela muito sobre o filme, e as pretensões de Fellipe Barbosa em deixar claro de que o caminho nosso aqui na Terra está muito para além da nossa morte. E a história de Gabriel Buchmann, seu amigo de infância, é a sua maneira de nos explicitar isso. O filme bem que podia se chamar Gabriel e as montanhas, tal a vontade dele de ver o mundo sob essa perspectiva, a das alturas.


Mas do que nunca esse é um filme de personagem, de mergulho absoluto na experiência dele e a tentativa de reconstruir um momento mais extremo de seu caminho no mundo. Aliás, essa é a própria lógica dos filmes de estrada, a da revelação do caminho e do desvendar sobre o mistério de viver nesse mundo. Afinal, o que viemos fazer neste planeta? Essa é a nossa grande pergunta existencial como seres que refletem, ou podem refletir, sobre o papel da vida dos indivíduos. Mas a verdade é que a maioria de nós preferimos escolher um canto para viver e ponto final. Mas essa não foi a escolha de Gabriel. Não à toa o diretor faz questão de trabalhar a partir de seu personagem uma distinção definidora de seu trabalho, a diferença entre turista e viajante, e Gabriel, vive as duas experiências em seu périplo pelo continente africano. Quando sua namorada o visita na Tanzânia, ele se torna um turista, faz os passeios oficiais do safári, os almoços em restaurantes chiques. Em todos eles inevitavelmente acontece uma confusão, um aborrecimento. E Gabriel não foi para a África para ser um mero turista, mas sim para ser um viajante, se misturar com as comunidades e pessoas com quem cruzou. E adotar suas vestimentas representava simbolicamente sua postura nos lugares aos quais visitava. Será que tudo que ele queria era se aproximar de seu objeto de estudo, conforme é dito sistematicamente no filme? Ou a sua intenção era ir além mesmo? O que é certo é que a sua natureza anti-acadêmica o levou a conhecer o seu objeto de estudo, a pobreza do continente africano, antes de estudá-lo ou escrever acerca dele. Mas claro que se pode indagar que aqui em nosso país também existe a pobreza e uma enorme e injusta disparidade social, que não precisaria ir até ao continente africano para sentí-la em toda a sua fúria. Mas esse traço revela muito acerca da origem burguesa do nosso personagem, um estudante de alta classe média, típico da zona sul carioca, que estudou na PUC-RJ.  


Por isso mesmo, “Gabriel e a Montanha” também é um filme sobre a nossa arrogância, sobre as nossas convicções de que nossa inteligência pode irremediavelmente tudo, mesmo que Fellipe Barbosa trate seu protagonista com todo o carinho do mundo. Tal como o personagem de John Malkovich em “O Céu Que Nos Protege”, de Bernardo Bertolucci, Gabriel opta pela vida de viajante, não a de turista, e durante os 131 minutos de filme, o que paira no ar é o enorme preço que temos que pagar quando colocamos nossos sonhos na frente e deixamos que  eles nos guiem e nos ceguem.   


A narrativa escolhida por Fellipe Barbosa funciona muito bem ao se utilizar da experiência de pessoas que conviveram nesse caminhar com Gabriel pelas paisagens africanas para narrar o momento de encontro deles. No filme, os inspirados atores João Pedro Zappa (Gabriel) e Carolina Abras contracenam com os próprios personagens reais, o que suscita uma inegável energia positiva e uma vontade imensa de reviver tudo, captar tudo, nem que seja para prestar uma homenagem a Gabriel.  Curioso como de repente, tal como em um documentário, ouvimos em voz over seus depoimentos e impressões desses personagens acerca de Gabriel. Mas Fellipe sustenta tudo de forma tão segura que esse detalhe manipulatório passa até despercebido pela maioria dos espectadores. Pode parecer que tal procedimento seja o mesmo adotado pelo neorrealismo italiano, pois afinal, nos dois casos os atores representam a si mesmos na tela. Mas há diferenças fundamentais no uso desses atores reais que merecem nossa atenção. Enquanto no movimento italiano a preocupação era a da construção de tipologias, sustentada em características sócio-culturais dos personagens, no intuito de acentuar a sensação de realismo, em “Gabriel e a Montanha”, esses atores são inseridos na trama como eles próprios, o que já de antemão lhes confere um outro sentido, com todo o peso das suas individualidades.
Mas o que mais fascina e entusiasma na remontagem dessa aventura de Gabriel é como Fellipe nos arremessa para dentro dela. Involuntariamente, passamos de espectadores a viajantes, mergulhamos juntos com eles, Gabriel e o saudoso amigo Fellipe, nessa delícia de descoberta, pois filme de estrada é isso mesmo, é um embarcar junto, viver junto, comer junto, se alegrar junto, experimentar junto. Mas só  não podemos morrer junto. A proposta de Fellipe é de criar esse duplo, onde cada espectador viva novamente a experiência de Gabriel, da mesma forma em que o ator João Pedro Zappa também teve que viver para reconstruir o seu Gabriel. Para isso, a vida do personagem retratado precisa nos permitir isso, e a de Gabriel nos propicia exatamente isso, por mais prepotente e exótica que a sua viagem tenha sido, a uma imersão sobre os nossos desejos e seus limites. E ainda mais, sobre a relevância e a necessidade do outro na nossa própria existência e de viver aprendendo continuamente com as diferenças que brotarem desse encontro.  


Visto no Estação Net Rio 5, no dia 03/11/2017.

Comentários

  1. Paulinho Assumpção - Excelente crítica. Importante a parte em que você chama a atenção para o lado arrogante do Gabriel. Não há como discordar, já que foi essa arrogância que o levou à morte. Além de confiar extremamente na sua inteligência, como você diz, parece também que o fato de ele ter conseguido chegar ao final (ou quase) da sua empreitada, com sucesso, e de ainda estar sob o enorme impacto das experiências vividas, tenha como que ficado num estado de embriaguez, querendo levar ao limite máximo a experiência iniciada há um ano atrás. Isto nos leva a pensar como nossas ações são repletas de simbologias, mesmo que não as percebamos.

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