Somos todos seres de outro planeta
Crítica de Marco Fialho
“Miséria é miséria em qualquer canto
Riquezas são diferentes
Índio, mulato, preto, branco
Miséria é miséria em qualquer canto”
Riquezas são diferentes
Índio, mulato, preto, branco
Miséria é miséria em qualquer canto”
Titãs - Miséria - autores Arnaldo Antunes, Paulo Miklos e Sérgio Brito
Não tem jeito, as desigualdades igualam os homens, pelo menos os mais pobres. Tal como se insinua na letra de Arnaldo Antunes, miséria é miséria em qualquer canto, seja na Terra ou em qualquer outro planeta.
Adirley Queirós é sem dúvida um dos que mais sabe disso e incorpora isso ao seu cinema. Podemos dizer que ele já parte desse enunciado ao adotar o ponto de vista de personagens periféricos, como se pode conferir em seu trabalho anterior, o emblemático “Branco Sai, Preto Fica” (2014). Sua escolha pelos excluídos é notória, em especial os negros, tanto os de Brasília, que moram na periférica Ceilândia quanto os que vêm de outros planetas, caso de WA4, personagem intergaláctico de seu novo filme “Era Uma Vez Brasília”. Este já é em si um periférico de outro planeta, um renegado. Sua nave, literalmente uma peça de ferro-velho, já espelha sua condição subalterna no seu lugar de origem.
Mais uma vez, Adirley nos desafia com seu mundo tão próprio e ao mesmo tempo tão nosso. O incrível é que apesar de tudo parecer irreal em seu universo cinematográfico, existe sempre algo de caótico e de sombrio que nos aproxima implacavelmente de sua obra, não antes sem nos instalar um incômodo, e desta vez beirando o terreno do insuportável. A câmera é quase sempre muito próxima dos personagens, pouco se vê o espaço a sua volta, mas quando os planos se abrem, o que vemos são a desolação, a noite, a ausência da plena luz, o deserto, e temos a sensação de profundo abandono.
A missão de WA4 é bem específica: matar o presidente Juscelino Kubitschek. Só que sua viagem nasce fracassada e um defeito o lança no inferno de nosso momento político mais desastroso, mais mesquinho possível, o dos deputados aprovando a admissibilidade do processo de impeachment de Dilma e as falas grotescas e ofensivas de Michel Temer. Os discursos dos deputados (aqueles mesmos que falam de suas famílias e de Deus), Dilma e Temer nos chegam por meio de gravações de áudio, sem as suas imagens respectivas, e acentuam um certo ar fantasmagórico na história.
Vale mencionar a camada sonora desse filme, o quanto Adirley se esforça em criar uma atmosfera sinistra, bem longe do aprazível. A fotografia escura, com predominância do amarelo e do azul, reforça essa impressão, a própria escolha em filmar à noite expressa com exatidão um clima bem próximo do apocalíptico. Os figurinos pesados e escuros também salientam esse contexto nada animador. O ritmo ralentado das cenas e os planos alongados nos convida a penetrar nesse mundo sombrio que se instaura solidamente a nossa frente.
“Era Uma Vez Brasília” não é uma obra de fácil digestão, muito pouco é dito pelos personagens, há um clima de desconfiança constante entre eles, mas seus olhares e expressões dizem muito. Pois é justamente pelo olhar que Adirley termina o seu filme, com uma convocação direta, apesar de muda, explícita à luta. O filme traduz de forma contundente o atual momento da política brasileira, de total apatia, desesperança e desunião. O próprio ardil que o diretor usa de estabelecer o destino inicial da viagem intergaláctica para a posse de Juscelino já diz muito sobre o fracasso político e social do projeto Brasília. Portanto, o que fazer quando seu local de moradia está ali, estabelecido em um terreno de decadência? A resistência e a união dos oprimidos, dos sem-voz em geral (os daqui e de outros outros planetas), são as únicas armas que Adirley nos aponta. Afinal, o refrão “miséria é miséria em qualquer canto” continua bem atual.
Visto em 18/11/2017, na sala 4 do Espaço Itaú de Cinema, durante a 9 Semana dos Realizadores.
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