A arte do empoderamento
Crítica de Marco Fialho
Preciso começar essa fala com uma confissão: há tempos não assistia um filme tão pulsante quanto “Café Com Canela”, filme de Ary Rosa e Glenda Nicácio, vencedor do prêmio de roteiro e público no 50º Festival de Brasília. Sua popularidade é explicável. Esse carinho todo em relação ao filme se faz pelo grande poder de comunicação. “Café Com Canela” consegue ser afirmativo e afetivo perante aos temas que trabalha. Tudo nele é tão transparente e viçoso, de uma espontaneidade apaixonante. Uma obra escancaradamente baiana, brasileira, preta, musical, ancestral, alegre, e acima de tudo, empoderada.
Mas muito do que fascina em ‘Café Com Canela” está em parte no elenco. Valdinéia Soriano, a Margarida, esbanja talento (já vem inclusive acumulando prêmios) e Alinne Brune, como Violeta, transborda carisma, uma preciosidade, descoberta pelos diretores. Ainda há a personagem da avó, presença sem fala, mas expressiva, da sambeira de roda de Cachoeira, Dona Dalva. O ponto fraco do elenco fica a cargo de Babu Santana, em uma atuação nada à vontade, pouco inspirada, ele não consegue convencer como um homossexual apaixonado e fascinado por um homem mais velho.
O filme fundamentalmente fala de encontros e o maior deles se dá entre a alegria de Violeta e a tristeza de Margarida, celebração e dor como representação da própria história da diáspora negra em terras brasileiras. Muitas vezes é a música que dá o tom do filme, pendendo ora para o samba de roda ora para canções mais melancólicas, como João Valentão de Dorival Caymmi, com uma interpretação bela e crepuscular de um dos personagens.
A música surge também na relação entre Violeta e a sua avó, são momentos muito ternos, onde lamentos são entoados pela neta, em uma atitude de profundo respeito aos ensinamentos postos pela ancestralidade. “Café Com Canela” tem diversos instantes assim, de profunda delicadeza entre os indivíduos, seres, em especial sobre quem veio antes, que sorriu e chorou as agruras da vida e deixou vivências marcantes para o próximo. Tudo no filme soa como uma constante celebração, uma necessidade de congraçamento, encontros afetivos e sinergéticos. A dor tende sempre a se transformar em alegria tal como deve expressar o movimento da vida.
“Café Com Canela” reforça a ideia que muito se fala hoje dos negros serem protagonistas e contarem suas próprias histórias, pelo seu viés cultural e vivências periféricas. E quando isso se torna realidade emociona, ainda mais que estamos falando de um longa que também é fruto das políticas de inclusão social ocorridas nos últimos anos. Mas não só, o resultado vem ainda de uma luta coletiva contra a invisibilização histórica, não só de grupos minoritários como de majoritários oprimidos. Afinal mulheres e negros nunca foram minorias em nosso país, só para uma minoria poderosa, interesseira e arrogante que quer continuar a manter as desigualdades como estão postas.
Não que o filme não tenha alguns senões, sobretudo alguns exageros formais desnecessários, ora dramatúrgicos ora técnicos mesmo, como um zoom deslocado em uma mesa, sem função narrativa alguma; uma declaração, que vira um discurso forçado, da personagem Margarida de amor ao cinema; e uma cena no início, um flashforward, onde diversos personagens conversando entre si sobre acontecimentos que ainda veremos, mas em uma misé-en-scene com diálogos pobres que poderiam estar em uma novela de televisão; uma câmera subjetiva para mostrar o ponto de vista do cachorro. Esses problemas são comuns em um primeiro filme, incomodam sim, mas não chegam a arranhar a força do filme, que se impõe com uma beleza e sinceridade tal, que faz os senões virarem pó.
“Café Com Canela” é cinema tão intenso para nós espectadores, que lembra e reafirma a célebre definição de Humberto Mauro, de que “cinema é cachoeira”. Se ele pudesse assistir ao pulsante e energético filme de Ary Rosas e Glenda Nicácio ele não teria dúvida de repetir a sentença. É a força de Oxum abrindo caminhos em nosso cinema.
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