Um corpo indócil
Crítica de Marco Fialho
A temática central de “Antes o Tempo Não Acabava” é a da identidade. E a cada nova cena essa questão vai tomando corpo no filme. E a escolha dos diretores Sérgio Andrade e Fábio Baldo em ter como protagonista um índio acentua e amplia essas discussões. E não se trata aqui de qualquer índio, o que vemos no filme é um ser em busca de seu lugar no mundo, por mais que haja sempre diversos obstáculos em seu caminho. Durante sua jornada vamos percebendo o quanto ele é um deslocado. E poderíamos até dizer mais exatamente que ele não cabe nesse mundo, ou seriam mundos, porque afinal nem o dos índios nem o dos brancos dão conta desse corpo indócil que se autoproclama Anderson. Será ele uma espécie de uma metáfora do índio contemporâneo? Em última instância, Anderson é um corpo que resiste, que não cabe em discursos prontos.
Pode-se dizer que “Antes o Tempo Não Acabava” é um filme sobre índios bem fora da curva. Nele o índio se coloca como nunca eu havia visto no cinema. Ele não é concebido como vítima de um sistema, é mais um revoltado contra o seu povo, sua cultura, mas também não podemos dizer que se assume como um branco. Canta músicas indígenas, dorme em rede, mas gosta das roupas dos brancos, de celular, tem uma conta no facebook, enfim é um ser com muitas nuances, um índio contemporâneo. Luta na Funai para assumir seu nome branco, Anderson, nega os rituais indígenas, os considera ultrapassados.
Mas o interessante é que o filme não discute se ele é ou não um aculturado. Essa discussão não está posta, o que está posto é o próprio personagem e suas angústias, não há julgamentos dos diretores em relação a ele. Os diretores situam o personagem como um indivíduo que quer mais, como um ser contemporâneo em busca de traçar o seu caminho no mundo. Não se questiona se ele está certo ou errado em negar suas tradições. No fundo, as questões de Anderson são as mesmas de qualquer indivíduo do século 21, a de como ser livre em um mundo dominado por regras sempre opressoras e limitadoras da nossa liberdade. Por isso, uma das marcas que esse filme nos deixa é a do grito. Anderson grita, mas não só ele, todos a sua volta gritam. Será então esse grito um algo que nos resta como voz?
E por falar em voz, pouco a ouvimos no filme. Os diálogos são pouquíssimos, a história se constrói prioritariamente por meio de ações, que deixam bem evidente as intenções do diretores em tentar expor a complexidade desse personagem, sem fechar em torno dele discursos pré-estabelecidos. O que chama atenção é o quanto Anderson foge o tempo todo das regras, não se submete aos seus ancestrais, mas também não aceita tudo que vem do mundo dos brancos, o que mais sentimos no decorrer da trama é o quanto ele tenta impor aos outros (brancos ou índios) o seu espírito de liberdade, o quanto ele é indômito e não aceita ser enquadrado.
Anderson enquanto personagem está muito para além das caixinhas que nos definem como um ser social. Vale mencionar o quanto ele é impreciso e imprevisível sexualmente. Mas isso não causa incômodos ou crises nele, pois tudo que perpassa sua personalidade parece fluir com naturalidade. Usa batom, cabelos longos, transa com homens, mulheres, não importa, sua forma de se colocar no mundo é assim, livre, não se permite amarras. Assim também age com os empregos, não se prende a eles. Trabalha em fábricas, salões de cabeleireiro, em cooperativas, mas nada o segura, ele sempre os abandona. Odeia ONGs, Funai e todas as instituições e pessoas que habitualmente se aproveitam dos índios para se promover e roubá-los.
“Antes o Tempo Não acabava” é um filme corajoso, que enfrenta um tema já há muito tempo batido na filmografia brasileira, o do lugar do índio em nossa sociedade. Mas o faz com um olhar muito criativo e próprio, o da constatação de que o índio não é mais um ser apenas imerso em suas tradições. Um exemplo disso é que os índios ouvem e compõem rock e hip hop. O problema do aculturamento está mais do que posto. É incontestável que o contato dos índios com a cultura dos brancos os contaminou de forma avassaladora, destrutiva e devastadora. E o filme trata exatamente disso, de como toda essa avalanche da cultura colonizadora impactou e ainda impacta na identidade desses povos. A pergunta que fica é simples, mas de difícil resolução: como pensar o índio a partir da constatação que ele não é mais só um silvícola?
Visto no Estação Net Botafogo, em 22 de novembro de 2017.
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