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A TRAMA - Direção de Laurent Cantet

A espessa nuvem que paira sobre a França

Crítica de Marco Fialho

*esse ensaio apresenta alguns spoillers.

O novo filme do cineasta francês Laurent Cantet, “A Trama”, apesar de possuir mérito pela intenção de levantar temas relevantes, falha nas suas escolhas, em especial as de roteiro, que revelam muitos problemas na origem de sua concepção fílmica. Ele até consegue  criar camadas bem interessantes, como a da metalinguística, do trabalho social com jovens, da diferença entre classes sociais (no filme explicitado no antagonismo entre professora e alunos), da xenofobia, das propagação de ideias fascistas pelas mídias sociais, do avanço da extrema direita, do racismo, da atração física entre diferentes gerações, da apologia gratuita à violência, entre outras possíveis, mas abre tantas janelas e portas ao mesmo tempo que terminam prejudicando um maior aprofundamento dos temas levantados, não conseguindo sequer esboçar um painel reflexivo importante e propondo um desfecho por demais complacente em relação ao sistema político que pretende criticar. A obra demonstra muito, mas de fato analisa e imerge pouco nas questões que suscita.

Assim como em “Entre os Muros da Escola” (2008), novamente o diretor tem como objeto os jovens, só que agora eles não estão mais em uma sala de aula tradicional, mas em uma oficina literária para estudantes que não vão muito bem na escola. Mas a discussão central de “A Trama” é a do difícil e penoso processo de amadurecimento da juventude em uma sociedade onde os aparatos midiáticos e virtuais ditam parâmetros comportamentais, enquanto a tradição oral e a história parecem lentamente ir sucumbindo. Impõe-se então para os jovens um contexto imerso em contradições, onde precisam conviver com as resoluções fáceis propiciadas pelo mundo virtual, como o poder de matar de forma banal em um jogo de videogame, e encarar concomitantemente as adversidades da vida cotidiana, desprovida dos atrativos inerentes a esse mundo fantasioso das diversões contemporâneas.

Para fugir da superficialidade, Cantet tinha dois caminhos para desenvolver sua história. Ou ele focava na diversidade temática, mas no caso focando em um único personagem, ou privilegiava o grupo de jovens. Ao ficar no meio do caminho e não realizar nenhuma dessas opções, o diretor tornou sua trama confusa e vazia. O próprio foco inicial do filme, a oficina (que inclusive empresta o nome ao título original, “L’atelier”), momento, aliás, que contém as melhores cenas de “A Trama”, vai se perdendo no avançar do enredo. Ao cambiar seu objeto do grupo de jovens para a relação entre a professora e um dos alunos, chamado Antoine (seria uma menção em tom de homenagem ao personagem do famoso filme de Truffaut “Os incompreendidos”?), todo as possibilidades de aprofundamento vão se esvaindo a cada nova cena. A própria relação desgastada entre Antoine e o restante da turma acontece de forma forçada, não existe uma construção que sustente bem a animosidade que vemos na tela.

Por tudo isso, o filme de Cantet fracassa em querer forjar um painel potente da França atual, ao mesmo tempo que não consegue um aprofundamento nem em relação aos personagens de Antoine nem da professora. A sua estratégia estética que tão bem funcionou em “Entre os Muros da Escola”, de aproximar a câmera dos personagens e acompanhá-los, no intuito da própria câmera criar uma possibilidade da multiplicidade de olhares (porque afinal ela saía de um personagem a outro e costurava as diferentes visões e culturas da França contemporânea), em “A Trama”, esse dispositivo não funciona, justamente porque o foco é alterado da oficina literária à relação de Antoine com a professora.

Cantet parece querer mostrar uma juventude perdida no meio das diferenças sociais e de esvaziamento político que leva a um típico quadro de intolerância, mas acaba se revelando tão perdido como diretor, ou até mais, quanto seus personagens.

Mas essa dispersão do diretor culmina mesmo na cena final, quando ele opta por projetar um futuro para o personagem de Antoine, reafirmando que o título proposto para o seu filme ( que em português literal seria “A Oficina”) era apenas um mero apetrecho decorativo. Ao invés de terminar na cena anterior, onde Antoine lê um enigmático e interessante texto de sua autoria para a turma e a professora, que deixaria tudo com uma grande interrogação acerca de seu destino e de todos, ele insiste em filmar uma última cena, na qual reforça seu bom-mocismo e sua crença ingênua e salvacionista no mundo do trabalho capitalista.

Enquanto no filme as discussões coletivas caminharam celeremente para o ralo, Cantet pareceu ficar seduzido apenas por Antoine, como se a atração da professora pelo aluno fosse a sua própria. Essa fixação ficou mais evidente pelas cenas em que ele colocou a câmera de modo a fetichizar o corpo de Antoine. Parece que a nuvem espessa que se instalou em diversos países da Europa neste início de século 21 embaçou a visão de muitos, inclusive de alguns de seus cineastas.

Visto no Estação Net Rio 5, em 18/11/2017.              




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