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TOM DA FINLÂNDIA - Direção de Dome Karukoski





A força da arte homoerótica


Crítica de Marco Fialho

Antes de mais nada é preciso dizer: “Tom da Finlândia” é um filmaço. Mas talvez ele o seja não só por ter um roteiro brilhante, uma direção de arte impecável, uma direção de atores primorosa, uma fotografia cheia de sutilezas, um ritmo de montagem perfeito, mas muito mais por ele ser um filme do nosso tempo e que dialoga com ele de maneira exemplar e necessária.


O resgate que o diretor Dome Karukoski faz desse importante personagem da iconografia LGBTQ acontece no momento em que há uma reação conservadora e intolerante aos grandes avanços conquistados nas últimas décadas em relação aos seus direitos, impondo-lhe novamente uma onda de feroz censura e violência. Por isso também “Tom da Finlândia” torna-se tão urgente de ser exibido em nosso país.


O diretor Dome Karukoski pensou a estrutura do filme em uma perspectiva que garante uma fusão de elementos históricos com o desenvolvimento do próprio personagem de Tom/Touko Laaksonen. Assim, o filme começa nas violentas batalhas durante a Segunda Guerra Mundial, onde o ambiente militar é visto como propício aos relacionamentos sexuais entre homens. A guerra é mostrada como um trauma da vida do personagem Touko Laaksonen, mas muito mais por causa de um soldado russo que ele mata com golpes de faca.
Após acabar a guerra, a imagem desse soldado será então um fantasma para Touko Laaksonen, mas será por meio do desenho que ele o exorcizará e o inspirará a realizar desenhos eróticos com homens musculosos e gays. Assim como o seu prazer, seus desenhos também serão proibidos, impedidos de serem veiculados pela moral puritana que persiste na Finlândia após a Segunda Guerra Mundial.   


A grande questão que move o filme é a da sexualidade, sobretudo porque naquele contexto hipócrita Touko Laaksonen não consegue afirmar sua homossexualidade, apesar de tentar, é obrigado sempre a procurar satisfação sexual na surdina, pois ali ela está colocada, nas sombras, nos porões e na escuridão dos jardins públicos. Por outro lado, a irmã se preocupa com a sua solteirice, e ele, por sua vez, esconde dela os desenhos que revelam o seu talento, mas também suas preferências sexuais.   


Vale aqui sublinhar o trabalho do ator Pekka Strang, porque é de uma vivacidade fora do comum. Nota- se que o desenho interpretativo que elabora para a criação de Tom/Touko acontece em seus detalhes, como  o realce que dá ao olhar marcante do personagem, deixando límpido de que ele jamais se curvará na vida. Há uma luta permanente pela afirmação da condição desse  corpo, não como quem ganha no grito, mas sim como quem se impõe com ações, e é justamente no trabalho de Pekka, que isso se concretiza brilhantemente.


O clímax do filme acontece quando Touko Laaksonen decide mostrar sua arte fora da Finlândia adotando o codinome de Tom. A partir de então o filme trabalha duas realidades dicotômicas. Enquanto a América possui o terreno fértil para os trabalhos eróticos de Tom, com homens de falos eretos, vestidos com casacos de couro, transando e exibindo seus corpos malhados; na Finlândia, ele continua sendo apenas o ex-combatente Touko Laaksonen, um amargurado “solteirão hétero”. Após o sucesso na América,  rapidamente, ele se transformará em “Tom da Finlândia” e será reconhecido assim pelo mundo afora, como o grande ícone da iconografia gay dos anos 1960/1970.


Karukoski nos mostra que não é só de festa que se resume a luta pela liberdade de gênero, que há muita violência, algumas veladas, outras explícitas. Mais do que um libelo a favor dos direitos à liberdade de gênero, esse filme traça um diálogo crítico contra a hipocrisia heteronormativa que insiste em dominar ainda muitas pessoas no mundo. O filme nos levanta questionamentos importantes, que nos ajudam a refletir também, sobre o atual retrocesso em relação aos direitos das pessoas de fazerem o que quiser com o seu corpo.


Por isso, a existência hoje dessa obra é imprescindível, por nos resgatar não só essa bela e afirmativa história do Tom artista e do Touko indivíduo, mas ainda por nos remeter diretamente a um direito fundamental, o da liberdade de expressão artística, seja ela qual for e de onde vier. Isso tudo faz “Tom da Finlândia” ser urgente e necessário, apesar de que, sua estupenda performace artística já bastaria, por si, uma ida prazerosa ao cinema.  

Visto no Festival do Rio 2017, no Cine Museu da República

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