O sorriso insosso da Monalisa
Crítica de Marco Fialho
A primeira cena de “O Formidável”, dirigido por Michel Hazanavicius (o mesmo do mega sucesso O Artista), mostra um momento no bastidor de “A Chinesa”. Destaco esse início porque ele nos vende a ideia de que o foco do filme poderia ser a discussão sobre o processo de criação de Jean-Luc Godard. Essa pretensa promessa se esvai rapidamente. O que é uma pena. Não que durante seus 106 minutos não se fale do cinema desse mestre iconoclasta e contestador da estética cinematográfica, mas a ênfase recai muito mais na relação amorosa entre ele e sua musa, que também foi sua esposa, a atriz Anne Wiazemsky.
A narrativa do filme tem como base o livro autobiográfico de Anne, Un an après, apesar de Godard ter alguns momentos onde também narra a história.Essa opção leva o diretor a trabalhar muito mais um Godard cidadão do que o Godard artista. O que vemos é um homem mau humorado, ciumento, machista, excêntrico, pernóstico, inseguro e mais do que tudo, um chato ao cubo. O filme se passa entre os anos de 1967-68, em meio à turbulência política do Governo do General De Gaulle, onde estudantes e operários foram às ruas em massa protestar contra a sociedade burguesa francesa.
Nessa época, Godard já havia realizado clássicos incontestáveis como “Acossado”, “O Desprezo”, “Alphaville” e “Pierrot Le Fou”, portanto já era um grande nome do cinema mundial. E Hazanavicius escolhe esse momento do cineasta franco-suíço não é à toa, ele quer tratar de uma época específica de Godard, a que ele está em crise com os rumos de sua carreira, até então assentada nos princípios da Nouvelle Vague Francesa, onde a reformulação da linguagem clássica foi contestada por ele e seus amigos, os chamados Jovens Turcos (Rohmer, Truffaut, Rivette, Chabrol, Resnais, entre outros), todos iniciados profissionalmente como críticos de cinema na célebre Cahiers Du Cinema. Godard então revelava sua insatisfação clara e precisa de que a revolução devia prevalecer ao cinema, e esse último então deveria estar a reboque do processo político que apontava para as transformações sociais profundas. Daí explicar sua adesão ao maoísmo.
Mas há na condução de Hazanavicius um ar de galhofa perante ao homem Godard, mas contraditoriamente, a linguagem do diretor está presente em várias citações escancaradas do mestre Godard, como se a obra valesse mais e até contratasse com o homem Godard. Essa opção pela paródia e pela metalinguagem como recursos narrativos são sem dúvida os pontos que mais chamam a atenção no filme, mas ao meu ver, também revelam os maiores fraquezas de “O Formidável”. Ao citar os filmes do mestre, através de procedimentos e reencenações, o filme se coloca em uma linha tênue entre a homenagem, o deboche e o pastiche. Cenas como a da câmera que percorre em travelling o corpo escultural de Bardot em “O Desprezo”; da legenda de subtextos colocada nos diálogos de crise amorosa entre Godard e Anne; e da cena em que falam em ser contra a nudez mas em que os atores fazem a cena nus, são exemplos evidentes dessa estratégia de Hazanavicius, que pouco acrescentam para um aprofundamento acerca da obra ou homem Godard, mas transformando o filme numa obra repleta de gags godardianas, por vezes até engraçadas, mas sem a menor potência.
O próprio título, que vem de um nome de um submarino de guerra, revelado numa notícia em que Godard escuta no rádio em casa com Anne, diz muito sobre o próprio personagem Godard que Hazanavicius propõe para seu filme, o de um homem e um artista voltado sempre à forma de seu ofício como cineasta. Isso fica notório quando Godard faz questão de sublinhar a maneira como a palavra formidável é dita pelo locutor.
Muitas vezes no filme nos defrontamos com questões fundamentais para entender aquele momento de clivagem do Godard cineasta, que tentava no meio de uma crise política eminente, dar uma guinada estética em sua carreira. Época em que o engajamento trazia reflexões lancinantes sobre o modo de fazer e de pensar o cinema. Assim, negar suas obras anteriores foi um passo crucial para poder seguir novos caminhos, como o que veio a seguir com a criação do Grupo Dziga Vertov, onde inclusive experiências de direção coletiva foram testadas.
Mas claro que também é sempre relevante desconstruir mitos, caso exemplar de Godard, humanizá-los, expor suas idiossincrasias, mostrar suas relações machistas com a mulher-atriz Anne. Esse é um ponto de destaque no filme, o de construir a narrativa a partir do depoimento dela, de sua visão acerca dele como homem mais do que o artista em si. Mas no todo, essa vida cotidiana do “gênio” Godard se mostra tão sem graça que ficamos nos perguntando se ela realmente valeria a pena de nos ser contada.
E por falar em visão, o filme traz algumas cenas cômicas de Godard quebrando os óculos sistematicamente. Essa metáfora dos óculos se espatifando se presta muito bem à intenção de Hazanavicius de construir um personagem confuso, e que constantemente tem problemas de visão, ou que está impedido de enxergar com nitidez o mundo que o cerca, mas também carece de ser melhor trabalhada, para muito além do riso fácil que essas sequências aparecem.
Ao explorar Godard também como homem, usando da própria ironia inerente às obras do personagem, para pisar e repisar seus defeitos e agruras, o diretor Michel Hazanavicius realiza um filme simpático, leve, fluido, mas que infelizmente desliza tão somente na superfície, sem trazer para o público grandes atrativos que o potencializam. A consequência disso é extrair de nós espectadores apenas alguns insossos sorrisos de Monalisa.
Visto no Estação Net Botafogo, em 28 de outubro de 2017.
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!